A Revista do Expresso

Xarabanda, por José Tolentino Mendonça

São um coletivo musical, mas também a associação que mais tem trabalhado, do ponto de vista etnográfico e antropológico, o mundo riquíssimo da cultura tradicional. No 47.º aniversário do Expresso, a Revista dedica uma edição especial à década que aí vem — e com uma versão áudio

Talvez fora do arquipélago sejam ainda pouco conhecidos, e é pena, porque merecem um amplo reconhecimento estes heróis da música tradicional da Madeira. Olho para as fotos deles no arranque da década de 80, chamavam-se então Algozes, e é comovente perceber que esta aventura nasceu de um bando de miúdos despretensiosos que gostava de ouvir Zeca Afonso e Adriano Correia de Oliveira e não perdia um número da informada revista “Mundo da Canção”. Quando começam a viajar em digressão pela ilha, quando arriscam sair do circuito do Funchal e a mergulhar mais a fundo no território rural, não levam só as suas vozes, levam também (e bem abertos) os ouvidos. A partir daí a passagem da música popular à música tradicional dá-se no rápido riscar de um fósforo. E também a mudança de nome: de Algozes a Xarabanda, prestando assim homenagem ao “charamba”, um tipo de canto improvisado que estava em extinção.

A escolha que os Xarabanda faziam pelo património da música tradicional tem precursores que é de justiça recordar. Na primeira metade dos anos 70, dois grandes inconformados culturais haviam preparado o caminho: o músico Artur Andrade e o poeta António Aragão depositaram em bobinas, na Direção Regional dos Assuntos Culturais, o primeiro ensaio de reconstituição de um magnífico e desconhecido cancioneiro insular, no qual depois os Xarabanda empenhariam todas as suas energias. Aqueles jovens músicos percebem que vivem talvez o último momento histórico para recolher canções de trabalho que conservam ainda referência ao labor dos escravos, cantigas de amor como ‘A Moira Encantada’ que se reportam visivelmente aos romances ibéricos de cavalaria, cantos religiosos usados em primitivas romarias, jogos de roda, melodias de embalar e uma pluralidade de bailes ancestrais que já só existiam na memória dos mais idosos. E partiam com o material de gravação às costas, acampavam em precárias tendas, serpenteavam veredas e levadas onde a luz elétrica e a televisão tinham chegado há muito pouco, sentavam-se nos alpendres com as bordadeiras, acompanhavam os homens na rega ou na apanha da cana-de-açúcar. E pouco a pouco, alguém retirava da sua lembrança os versos de uma cantiga que aprendera oralmente na infância ou um velho tocador popular ia ao interior da própria casa buscar um cordofone madeirense (ou simplesmente um ritmo, um modo de tocar, um brilho no tocar esses instrumentos de corda) que para eles era novo. Foi assim que mapearam este tesouro fundamental e cresceram com ele, porque os Xarabanda são um coletivo musical, mas também a associação que mais tem trabalhado, do ponto de vista etnográfico e antropológico, o mundo riquíssimo da cultura tradicional. Fundaram uma revista para divulgar aspetos da etnografia do arquipélago, investiram na musicologia, publicaram pesquisas que depressa se tornaram referenciais para o estudo da tradição musical e literária madeirense. Não, não é acidentalmente que a Madeira é a terra natal de Herberto Helder, de Edmundo Bettencourt, de Cabral do Nascimento ou de José Agostinho Baptista. Não, não se pode subestimar a força generativa do cancioneiro oral e o seu impacto na alma dos lugares.

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