A Revista do Expresso

A nova década: “O futuro da ética: dos entraves à esperança?”, por José Tolentino Mendonça

A ética do futuro pede que se ultrapasse o ceticismo ético que tem conduzido as nossas sociedades a uma espécie de astenia. Nesta edição especial de aniversário, pode também ouvir a crónica

Num dos livros da jornalista bie­lorussa Svetlana Aleksievič, Prémio Nobel da Literatura em 2015, parte-se de uma inquietante afirmação do escritor Aleksandr Grin que defendia, no primeiro vinténio do século XX, o seguinte: “O futuro deslocou-se do lugar onde deveria estar.” A tese de Svetlana Aleksievič é que nem hoje podemos esperar que o futuro esteja no lugar onde deveria e que, feridos por um passado tumultuoso e incertos quanto ao futuro, passamos a viver aquilo que ela chama “um tempo de segunda mão”. Alguma razão ela tem. Por isso, uma reflexão necessária prende-se com o reconhecimento das sucessivas crises que nos trouxeram até aqui: a crise das ideologias; a crise da interpretação da natureza — e inclusive da natureza humana —, vista não como absoluto fixo mas como um processo dependente de interações várias (a interação com a cultura, com o desejo individual, com as tendências dos regimes vigentes...); a crise da razão científica; a crise do conhecimento humano na sua relação com a verdade; a crise do antropocentrismo (o antropocentrismo moderno acabou por colocar a técnica acima da realidade do mundo, debilitando o seu valor intrínseco); a crise da linguagem argumentativa, que parece cada vez mais prisioneira quer da arbitrariedade consensua­lizada como forma de comunicação quer da insignificância teórica. Não podemos pensar o futuro da ética e dos valores morais sem fazer contas com esta profunda crise da ética normativa que recebemos como herança do século que findou.

ILUSTRAÇÃO SARA FEIO

Além disso, é também verdade que estamos no turbilhão de uma mudança epocal. Tornou-se por demais evidente a emergência de elementos e desafios inéditos na História humana que somos chamados a enfrentar, não já simplesmente como mais uma era da técnica mas como o início da era do algoritmo e da inteligência artificial. E um dado objetivo desta nova época pode ser encontrado na necessidade de uma definição ética em novos domínios. Dou dois exemplos: um, o tema da bioética, que conheceu a sua primeira sistematização em tempos relativamente recentes (a pioneira “Enciclopédia da Bioética”, da Universidade de Georgetown, foi publicada em 1980); outro, o tema da ecologia e da responsabilidade face às gerações futuras na gestão dos recursos do planeta, que teve uma primeira abordagem ética consistente na obra de Hans Jonas “O Princípio Responsabilidade — Ensaio de Uma Ética para a Civilização Tecnológica”, editada em 1979. Jonas mostra ali como do sonho fáustico da modernidade todos acordamos afundados num território de gelo ao nos apercebermos que não é a natureza, mas os diversos poderes que inventámos para a dominar, a verdadeira ameaça à espécie humana.

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