Henrique Monteiro

Liberdade e guiões partidários

Henrique Monteiro (www.expresso.pt)

A liberdade interna do PS, uma das suas grandes virtudes, é hoje uma caricatura do que foi. Hoje há um guião, mas felizmente já há resistência. Pena é haver tão pouca gente a pensar pela sua própria cabeça.

Confesso que fiquei surpreso com a prestação do líder da JS no último "Expresso da Meia-Noite", na SIC Notícias. Pensei que não existia estalinismo no PS, mas terei de rever esta ideia.

O chefe da JS acha que não deve haver liberdade de voto sobre o casamento gay, porque está no programa do PS e - se está no programa - toda a gente tem de votar o que lá está. Duarte Cordeiro opõe-se também à existência de um referendo: afirma que estando o casamento homossexual nos programas do PS, BE e PCP, todos os votantes destes partidos já votaram a favor.

O mesmo pensa, aliás, a direcção do PS sobre o voto em projectos de outros partidos que prevêem a adopção de filhos por parte de casais homossexuais. O programa socialista diz que não, e portanto está dito que é não que se deve votar!

Por este andar é melhor colocar tudo no programa. Do mesmo modo que o califa Omar achava que tudo estava no Corão, todos os aspectos da vida, mesmo os mais complexos e polémicos, serão decididos em congresso e previstos num programa, anulando-se essa subversão que é a opinião pessoal. Assim nem são necessários deputados, basta amanuenses.

O jovem socialista vive num mundo simples. Eu invejo essa simplicidade como Jan Huss invejou a velhinha que pôs um raminho seco na fogueira que o condenava (ó santa ignorância, clamou, ou, em latim, sancta simplicitas). Invejo-o porque sou contra o referendo, mas não pelos motivos dele; porque conheço muita gente que votou PS e é contra o casamento dos homossexuais e porque, achando que se o PS quer equivaler a união homossexual ao casamento (o que acho um erro), terá, então, de permitir a adopção para não criar - aí sim - uma discriminação gritante e absurda entre casamentos hetero e homo.

A não existência de liberdade de voto em casos como estes é verdadeiramente uma aberração. A não existência de liberdade de voto, em quase todos os casos, é, aliás, uma aberração.

Felizmente há ainda muitos no PS que recordam um líder que se negou a apoiar o candidato oficial do partido a PR; que recordam figuras que abandonaram as listas de deputados em nome da sua autonomia pessoal; que recordam os que votaram contra uma Lei de Segurança do Governo PS, em nome da consciência individual. E sabem que os militantes citados se chamam Soares, Guterres e Alegre e que esse é (ou costumava ser) o PS genuíno, livre.

E percebem que é tempo de pôr fim à voragem do PS pelo poder e à guerra absurda com Cavaco, à lógica centralizada num homem. Que sabem que o PSD ainda paga por ter sido como é agora o PS.

Henrique Monteiro

Texto publicado na edição do Expresso de 24 de Dezembro de 2009