Crónica

A culpa é dos chineses

As vendas globais das maiores marcas de luxo no terceiro trimestre são o ponto de partida da crónica ‘Sem Preço’ desta semana

Os chineses estão a trocar as voltas às marcas de luxo
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Há mais de uma década que a China é a grande responsável pelo aumento do consumo de luxo mundial, a reboque do crescimento económico do país. É graças aos chineses que as marcas de luxo recuperam dos estragos da pandemia, mas os meses do verão de 2021 mostram que eles são responsáveis por isto, mas também pelo seu oposto.

As duas maiores holdings de luxo acabam de anunciar os resultados financeiros no terceiro trimestre do ano e a maior surpresa é o tímido crescimento de 1% da Kering na Ásia-Pacífico, enquanto o LVMH se fica pelos 12% na mesma região, em relação ao verão de 2020. Vale a pena recordar que, desde o início do levantamento das restrições pandémicas, as marcas de luxo têm crescimentos na China em torno ou acima dos 50%, com o desconfinamento mais cedo do que no resto do mundo e o ‘revenge shopping’ a justificar a corrida às lojas no país.

A Gucci vende menos 3% na Ásia-Pacífico, que representa quase metade (41%) das receitas mundiais da marca
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A esta queda na China não será alheia a desaceleração económica entre julho e setembro, com o Produto Interno Bruto chinês a crescer no trimestre apenas 4,9%, o ritmo mais lento desde o início de 2021. Mais. Em agosto, o presidente Xi Jinpig anuncia o lançamento de medidas dirigidas à ‘prosperidade comum’, para combater o desequilíbrio na distribuição da riqueza através de um pacote fiscal. A ideia é atacar os rendimentos excessivamente altos, que têm feito da China o ‘berço’ da maioria dos novos bilionários e o país onde o consumo de luxo mais cresce.

Mas não são estes aspetos que parecem justificar o descalabro agora, uma vez que nas mesmas condições de contexto há marcas que mantêm o ritmo. Vamos por partes. A ‘estrela’ da Kering, a Gucci, perde 3% de vendas na Ásia-Pacífico, que representa quase metade (41%) das receitas globais. O ‘bater de asas’ no Oriente tem como resultado um crescimento global minúsculo (4,5%) desta insígnia italiana, quando comparado com o aumento de 27,8% da Yves Saint Laurent. Esta, a segunda marca mais importante da Kering, cresce 2% no mercado asiático, que pesa apenas 22% nas vendas totais da marca. Quer dizer que quanto mais uma marca depende da China, maior pode ser o impacto de um ‘espirro’ na segunda economia do mundo.

A Saint Laurent tem o maior aumento (27,8%) no grupo Kering
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Esta é uma conclusão que a pandemia já tinha posto em evidência (quer o peso das vendas no país, como as compras dos chineses em turismo na Europa), com as consequências do encerramento das lojas na China e a suspensão das viagens internacionais. Há marcas, porém, que contrariam a lógica. No grupo LVMH, que tem na China um dos seus maiores mercados, a Louis Vuitton e a Dior integram a divisão de Moda e Artigos em Pele, que é a que mais cresce este verão, estando já 38% acima das vendas no terceiro trimestre de 2019 e mais 24% do que no mesmo período em 2020. Na Ásia-Pacifico, o LVMH cresce 26% e 12%, comparando com este período nos dois anos anteriores, respetivamente. Mas é nos Estados Unidos que as vendas sobem mais (28%), enquanto na Europa o aumento das vendas (23%) não lhe fica muito distante.

Outro aspeto que joga a favor do maior grupo francês na China é o facto de ter um número muito mais elevado (cerca de 75) de insígnias e deter a marca de luxo mais desejada e massificada no país (a Louis Vuitton), principalmente as carteiras e outros artigos em couro, que alimentam o imaginário nacional. A apetência é extensível aos consumidores do resto do mundo, que fazem com que a Louis Vuitton dê o maior contributo no lucro operacional do grupo LVMH, que no terceiro trimestre de 2021 vende mais 20% do que no mesmo período em 2020, ficando 11% acima de 2019.

A celebrar os 200 anos do nascimento do fundador, a Louis Vuitton contribui com a maioria do lucro operacional do LVMH
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No maior grupo de luxo do mundo, a seguir à moda e aos artigos em pele, os perfumes e a cosmética são o segmento que regista o segundo maior aumento do trimestre (19%) seguido pelos relógios e joias (18%), o retalho seletivo (15%) e os vinhos e bebidas espirituosas (10%). Na Kering, o segundo maior do setor e que apresenta os resultados por marcas, a Yves Saint Laurent é a que mais cresce globalmente nos meses de verão (27,8%), à frente da divisão que integra a Balenciaga, Alexander McQueen, Brioni, Boucheron e Pomellato (26,1%) e da Bottega Veneta (9,3%), com a Gucci na ‘cauda’ dos crescimentos (4,5%).

Ontem, quinta-feira, a Hermès divulga as vendas nos meses de julho, agosto e setembro e baralha ainda mais o que se passa, na China e no consumo de luxo em geral. Com apenas uma marca, a Hermès tem um aumento de 29,3% na Ásia-Pacífico, muito acima dos 12% do grupo LVMH e do 1% da Kering nesta região, e de 66,8% quando comparado com o verão de 2019, o último em que vivemos sem coronavírus. À parte a justificação poder passar pelas diferenças entre os respetivos modelos de negócio, o que é facto é que a Hermès reafirma a sua aura de luxo supremo, centrado na qualidade do trabalho manual e na consequente produção escassa, que a torna menos passível de massificação.

Na Hermès, o maior crescimento do trimestre (53,7%) é na divisão de relógios
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É nas restantes geografias, porém, que há os maiores crescimentos - Américas (48,4%) e Europa (40,3%) – e, globalmente, a Hermès vende mais 31,2% e mais 40,3% em relação ao terceiro trimestre de 2020 e de 2019, respetivamente, para um total de €2,367 mil milhões. As áreas de negócio que mais sobem são os relógios (53,7%), sedas e têxteis (49,2%) e joias e artigos para casa (47,5%), evidenciando a tendência de procura por este tipo de produtos, que acontece desde o início da pandemia. Com crescimentos inferiores, mas acima da barreira psicológica dos 20%, encontram-se o pronto-a-vestir e acessórios (39,4%), perfumes e beleza (32,5%) e os artigos em pele (22,2%).

Num cenário que se mantém de instabilidade (novas variantes do coronavírus, crise na China e viagens internacionais a meio gás), os próximos três meses, os últimos do segundo ano pandémico, podem trocar as voltas às expectativas. A China, antigo motor de crescimento do consumo de luxo, cederá a posição aos Estados Unidos e à Europa?