Crónica

Rimar verão pandémico com reclusão numa ilha? É aqui

Na crónica ‘Sem Preço’ desta semana, a jornalista Catarina Nunes viaja até à ilha do Pico para ir ao encontro de luxos que não têm a ver com dinheiro

A imponência do vulcão é o que o Pico tem de mais especial
Francisco Nogueira

Este segundo verão pandémico não se está a revelar tão relaxado como o esperado. A variante Delta, a duração do efeito da vacina e a necessidade de uma terceira dose estão a fazer-nos repensar o contexto do merecido descanso. O desejo de fugir de tudo isto faz das férias em reclusão o novo luxo.

Por característica de personalidade sou naturalmente mais inclinada a procurar destinos pouco massificados, surpreendentes e em geografias longínquas. Só há pouco tempo constato que é possível não sair do território nacional e deambular num cenário único, sem me cruzar com meio mundo. A ilha do Pico, a segunda maior dos Açores mas pouco povoada, reescreve também a definição de luxo e de ilha paradisíaca.

Na Adega do Fogo, o antigo solar com 200 anos e a destilaria anexa ganham uma piscina aquecida
Francisco Nogueira

Não há palmeiras nem extensos areais, e o sol e a temperatura são mais ou menos caprichosos, dependendo das épocas do ano. Mas nada disto se torna relevante perante a imponência do vulcão (que dá nome à mais jovem das ilhas açorianas) e a intensidade do negro do lajido vulcânico (literalmente por todo o lado, do chão que pisamos às poucas construções que existem), mais os misteriosos currais, que são património da UNESCO desde 2004 e onde se encontram as vinhas que estão a reposicionar internacionalmente os vinhos do Pico.

Se tudo isto para mim é uma revelação, o mesmo não se pode dizer de Benedita Branco. Há 40 anos que a ex-publicitária convertida em hoteleira conhece de cor a ilha, onde chega na adolescência para passar as férias de verão em casa da família do namorado (mais tarde marido). Já na idade adulta compra uma casa na zona de São Miguel Arcanjo, que arrenda a turistas e que lhe desperta o interesse pela hotelaria.

A área social é na sala de refeições e na destilaria, onde os alambiques foram recuperados
Francisco Nogueira

A mudança definitiva para o Pico dá-se em 2018, quando inaugura o Lavas Homes, conjunto de casas que compõem uma mini-‘aldeia’ turística construída na encosta da Terra Alta, com vista panorâmica sobre o mar. Mas o que traz esta história e o Pico à crónica desta semana é o mais recente projeto de Benedita Branco, na zona da ilha que é património da UNESCO. É no Cabrito que se encontra a Adega do Fogo, numa antiga casa com destilaria que desde meados de julho está aberta a todos aqueles que procuram alojamento com distanciamento social, com mar a dez passos de distância (mesmo), e uma imersão no passado e nas tradições da parte mais especial da ilha.

A propriedade herda a denominação do antigo propósito e da localização. Por aqui, as adegas são as casas onde os ‘picarotos’ recebem os amigos, comem, bebem, dançam, pernoitam e, em alguns casos (como este), produzem aguardente. O ‘fogo’ vem da vista privilegiada para o vulcão do Pico e do histórico de destilaria e da ‘queima’ da fruta que dá origem à aguardente. Ressuscitar estas memórias é, aliás, o propósito e há a possibilidade de usufruir de experiências que mergulham na alma da ilha. Já lá vamos.

A estrutura original é evidente no interior dos quartos, através da pedra vulcânica e das vigas do teto
Francisco Nogueira

Comecemos pela casa que garante tudo isto, mais a desejada fuga de tudo e de todos. Tem seis quartos, ocupação máxima de 12 pessoas em estadias no mínimo de três ou cinco dias (inverno ou verão) e só está disponível em regime de reserva com ocupação completa, o que garante uma ‘bolha’ de proteção pandémica. Atualizada para os níveis de conforto do século 21, a estrutura original deste antigo solar com cerca de 200 anos mantém-se. É evidente no interior dos quartos, através das pedras vulcânicas em algumas paredes e nas vigas de madeira do teto restauradas, que contrastam com a pintura branca e o chão de madeira clara, resultado da atual intervenção.

Todos os quartos têm nome e estão distribuídos por dois pisos (quatro em cima e dois em baixo). O quarto Fogo é o mais especial, por ter uma porta de acesso a um terraço com vista frontal de mar, acessível igualmente por uma escada que dá diretamente para a estrada que separa a Adega do Fogo do mar. No passado, é neste terraço que se baila a Chamarrita, dança típica do Pico que é uma das experiências disponíveis agora, animada pelo som de músicos que tocam o cancioneiro local e que trazem cultura e alegria aos serões na Adega do Fogo.

No passado, é neste terraço sobre o mar que se baila a Chamarrita, dança típica do Pico que é uma das experiências disponíveis
Francisco Nogueira

Nesta nova reencarnação, porém, a área social é deslocada para a antiga destilaria, onde os alambiques foram recuperados para retomar a tradição de ‘destilaria comunitária’. Entre novembro e dezembro, a produção de aguardente estará a todo o vapor, com a possibilidade dos hóspedes participarem no processo a partir da ‘queima’ de frutos locais, como o figo e o ananás, por exemplo. Na continuação do espaço da destilaria, separada por um vidro, encontra-se a sala de refeições e a cozinha. A Dona Isilda não só confeciona as melhores iguarias como dá workshops do receituário do Pico, como o bolo de milho. À noite também é ela a guia na apanha de caranguejos junto ao mar, outra das atividades disponíveis.

No exterior da propriedade com 4500 metros quadrados de área e rodeada por currais, há ainda um forno a lenha com churrasqueira e uma mesa circular, atravessada pelos troncos das árvores, adaptando-se ao contexto, mais um poço de maré ligado ao alambique e que fornece a água que arrefece as serpentinas por onde passa a aguardente. Para aqueles que luxo é o descanso e o bem-estar, há uma piscina infinita aquecida, sauna, massagens ao ar-livre com óleos essenciais de plantas autóctones, tudo com vista para o Pico, bem como serviços de manicura e cabeleireiro, por marcação.

No exterior da propriedade com 4500 metros quadrados e rodeada por currais, há ainda um forno a lenha com churrasqueira e uma mesa
Francisco Nogueira

Para Benedita Branco, o vulcão é aquilo que a ilha tem de mais especial, mas o que determina a compra da antiga Adega do Rodolfo (nome do proprietário anterior) é a sensação de recuar 200 anos no tempo, na primeira vez que aqui entra. A ‘viagem’ continua quando se sai da Adega do Fogo, no Cabrito, em direção aos Arcos, zona de eleição para os banhos de mar. No caminho (recomendo que seja feito de bicicleta), a sensação é de estar em outro país (no caso de quem tem Portugal Continental como referência). Sem vislumbrar viva alma e em absoluto silêncio, a neblina cria uma aura de mistério ‘à la Miss Marple’. Rendido à natureza inóspita, ao negro do lajido, ao azul do oceano e ao verde das vinhas, o tempo parou. O maior dos luxos.

Adega do Fogo

Toda a propriedade e máximo de 12 pessoas, estadia mínima de cinco noites (verão) ou três noites (inverno), €2000 por noite

Rua Marginal 1, Cabrito, Santa Luzia

9940-102 São Roque do Pico

Tel. 919 803 181

adegadofogo@gmail.com

https://adegadofogo.com/