Crónica

O maior luxo? Partilhar um legado

A Herdade da Malhadinha Nova é o reflexo de uma família que projeta um lugar que honra o seu contexto, escreve a jornalista Catarina Nunes na crónica ‘Sem Preço’ desta semana

A imensidão alentejana é um dos luxos naturais na Herdade da Malhadinha Nova /
João Guimarães

A ideia da família tradicional, como base da organização social, há muito que vem sendo desconstruída. Mas há quem parta dessa tradição não para desafiar o que está estabelecido, mas para resgatar as origens de uma herdade, em pleno Baixo Alentejo, e construir um legado. Honrando o passado e cuidando do presente, enquanto extensões do próprio conceito de família.

Curiosamente, a Herdade da Malhadinha Nova não fazia parte do património da família que aqui está instalada. É adquirida em 1998 pela família Soares, enquanto concretização do sonho de produzir vinho, setor ao qual já está indiretamente ligada desde 1983, com a distribuidora Garrafeira Soares, sedeada no Algarve. O sonho vai crescendo e ganhando novas formas, com a produção de mel, azeite, cavalos lusitanos e agropecuária, e a aquisição de propriedades circundantes.

Rita Andrade Soares (à esq.) ao lado do marido João Soares, que em conjunto com o irmão Paulo e a cunhada Margaret (ambos à dir.), a mãe Maria Antónia (sentada ao centro) e os filhos dos dois casais são a alma da Malhadinha Nova
D.R.

Só em 2008 surge a vertente hoteleira, com a reconstrução da casa original da propriedade, transformada em Malhadinha Country House & Spa. O motivo que traz esta herdade à crónica desta semana é que os 450 hectares que a compõem ganham quatro novas casas (Ancoradouro, Pedras, Ribeira e Artes e Ofícios), durante a pandemia, dando uma outra dimensão à ideia de luxo com distanciamento físico. Isto no mesmo ano em que passa a ostentar o selo Relais & Châteaux, que distingue o foco local, a alma do proprietário e a melhoria do mundo através da cozinha e da hospitalidade, entre outros critérios.

Comecemos pela alma do proprietário. Aqui, toda a família (os irmãos Paulo e João Soares, mais as respetivas mulheres e filhos) colabora com o projeto (os filhos, dos sete aos 22 anos, fazem os desenhos dos rótulos dos vinhos). Mas é a Rita Andrade Soares, casada com João, a quem cabe a liderança. Esta educadora de infância (que não chegou a exercer a profissão) é a CEO e responsável por todo o conceito e detalhes, não só das novas casas como do espírito que se respira na Malhadinha Nova: o luxo do tempo, da imensidão alentejana e da tradição local.

A Casa das Pedras segue uma linha contemporânea e é a mais singular. As quatro suites que a compõem são as únicas sem aéreas comuns e que têm jardim e piscina privados
Fréderic Ducout

Todas as casas têm uma história para contar. Ou, então, é Rita quem as imagina e as conta através da arquitetura e do design dos interiores, com materiais e peças que escolhe meticulosamente. A Casa das Pedras é a mais singular de todas, uma vez que as quatro suites com sala de estar que a compõem são as únicas sem aéreas comuns e que têm jardim e piscina privados, além de seguirem uma linha totalmente contemporânea. Construídas sobre uma antiga ruína numa elevação de xisto, as suites que compõem a Casa da Pedras têm o foco no design. Algumas das opções passam por banheiras da italiana Agape e aparadores da portuguesa Much Wood, por exemplo, além de túnicas de linho da Harmony Textile e produtos de higiene Bulgari (comum a outras casas, a par com amenities Hèrmes).

As Pedras é também a casa mais central, a meio caminho de todas as zonas da propriedade e menos distante do local do pequeno-almoço e do Spa, na casa original da herdade. Nas restantes novas casas, a inspiração é tipicamente alentejana. No ponto mais alto da Malhadinha encontra-se a Casa do Ancoradouro, com sete suites, piscina e áreas comuns (cozinha, biblioteca, bar, sala de estar com lareira e um piano Steinway & Sons, entre outros), recheadas de objetos históricos recuperados e de mobiliário contemporâneo, onde se destaca o candeeiro Heracleum, do designer Marcel Wanders, cujo nome denomina a planta com flores brancas, que cresce espontaneamente na herdade da Malhadinha.

Além da piscina infinita sobre a paisagem alentejana, a Casa do Ancoradouro tem sete suites que podem ser reservadas separadamente
Fréderic Ducout

Junto à ribeira de Terges, que atravessa a propriedade, encontram-se as casas da Ribeira e a das Artes e dos Ofícios, ambas igualmente construídas sobre antigas ruínas. A primeira inclui três suites, cozinha e sala de estar, e tem na água a referência para a decoração em diferentes declinações de azul. Antigos móveis de farmácias, transformados em louceiros, e aparadores da portuguesa Olaio são algumas das preciosidades que aqui se encontram. Na Casa das Artes e dos Ofícios domina a arte, o artesanato e o espírito comunitário. Era aqui que os habitantes de Albernôa, vila a cinco quilómetros da Malhadinha Nova, vinham cozer pão, lavar a roupa e buscar os mantimentos, que chegavam através da ribeira de Terges, na época em que este afluente do rio Guadiana era navegável.

Nesta casa, a com menos quartos (dois), Rita Andrade Soares presta tributo aos artesãos e às suas técnicas ancestrais, através do design exclusivo dos candeeiros Achigãs (criados através do projeto TASA), em madeira e buínho, uma espécie de junco que cresce em zonas húmidas, como na ribeira de Terges. A componente social e ambiental não se fica por aqui. Há peças de artistas como Cláudia Sampaio e Anabela Soares, do projeto Manicómio, que integra pessoas que vivem com doenças mentais; um candeeiro feito com garrafas de plástico retiradas do oceano; e um serviço Vista Alegre em que parte dos lucros das vendas reverte a favor da reflorestação da Amazónia, entre outros detalhes.

A Casa das Artes e dos Ofícios é um tributo aos artesãos e às suas técnicas ancestrais, predominando a arte e o espírito comunitário
Fréderic Ducout

Não diminuindo a beleza e o luxo de todas estas raridades, há um detalhe à chegada que materializa o espírito da Malhadinha Nova e dos Soares, que é comum a todas as casas. Hóspede, casal ou famílias são enquadrados no ambiente com fotografias suas, emolduradas e colocadas no contexto da casa onde irão pernoitar. O detalhe é tão surpreendente que, por milésimos de segundo, fica-se com a sensação de estar a chegar a um lugar onde já se esteve e que guarda, carinhosamente, memórias nossas. As minhas desculpas por esta revelação desmancha-prazeres, que irá retirar o efeito-surpresa ao caro leitor que se prepara para rumar à Malhadinha Nova, mas a emoção de passar uns dias num local com referências nossas perdura para lá da chegada.

Fora das casas há ainda mais para sentir e partilhar. Para quem como eu aprecia o amanhecer e o silêncio, um passeio de bicicleta quando este pedaço de Alentejo está a acordar pode ser uma primeira abordagem à Malhadinha Nova. Ou em qualquer momento do dia (o menos recomendado será a hora do calor) em moto 4 (para os mais ‘acelerados’). Há inúmeros caminhos e passeios possíveis, mas em todos está garantido um ‘mergulho’ na biodiversidade da herdade, que, além das seis vinhas, inclui oliveiras, eucaliptos, colmeias, hortas e pomares, bem como a ribeira de Terges e vários lagos. Ah, e prepare-se para se cruzar inúmeras vezes com as flores Heracleum, que dão o nome ao candeeiro que se encontra na Casa do Ancoradouro, e também com algumas espécies autóctones, como o porco preto, a vaca alentejana, as ovelhas merinas (pretas e brancas) e os cavalos puro-sangue Lusitano. Todos em liberdade, mas com as devidas delimitações de territórios.

O restaurante na adega convive, literalmente, com o olival e tem vista panorâmica para o montado
Fréderic Ducout

Se fizer o passeio partindo da entrada principal, começa por encontrar a vinha da Malhadinha e a casa da família Soares, que vive entre o Alentejo e o Algarve, onde gerem igualmente a Garrafeira Soares. Em frente, no lado oposto, está o motivo que faz desta herdade o destino de apreciadores de alta-gastronomia: o restaurante na adega, com consultoria do chefe Joachim Koerper, que ostenta duas estrelas Michelin no Eleven, em Lisboa. Logo abaixo localiza-se o novo espaço da receção, que inclui uma loja com os produtos da herdade (vinho, azeite e mel) e de algumas marcas de design que se encontram nas casas, bem como um bar de vinhos.

A coudelaria com picadeiro coberto, o picadeiro aberto e um circuito de manutenção ao ar livre preenchem a paisagem natural conforme se vai descendo a estrada principal, em direção ao Monte da Peceguina, que dá nome a uns dos vinhos aqui produzidos e onde está localizada a Malhadinha Country House & Spa. Partindo daqui ruma-se em direção às quatro novas casas, primeiro a das Pedras, seguida pela das Artes e dos Ofícios e a da Ribeira, e no final, no ponto mais alto da herdade, a do Ancoradouro. Saindo do perímetro da Malhadinha, em Albernôa, localiza-se o mais distante dos alojamentos, a Venda Grande. A reconversão deste antigo local de venda de produtos de mercearia e de drogaria, em 2018, permite aos hóspedes experienciar a vivência numa típica vila alentejana.

Um passeio de balão sobre a planície alentejana é uma das atividades mais original

O foco local é extensível às atividades disponíveis, com mais ou menos limitações, devido à covid-19. As mais radicais são o passeio de balão ou o salto de paraquedas, sobrevoando a herdade, mas em terra firme há muito mais opções. Aulas de cozinha com a Dona Vitalina, depositária do receituário local (como a sericaia e o cozido de grão) - ou com um dos chefes residentes (para uma abordagem contemporânea à culinária alentejana) - e piquenique junto às vinhas são algumas das opções para os apreciadores de gastronomia, não esquecendo as óbvias provas de vinho. Para aqueles que têm alma de artista, há workshops de técnicas de artesanato local e de viola Campaniça. Enquanto criadores de cavalos Lusitanos, a família Soares propõem também passeios equestres pelas vinhas.

Em 2019, com apenas 10 quartos, a hotelaria representava €1 milhão dos €3,5 milhões de faturação anual da Malhadinha, cabendo à produção de vinho €2,2 milhões e a restante diferença à produção de azeite e pecuária. Até 2023, com as novas casas e experiências, a perspetiva é que os pratos da balança das duas principais atividades se equilibrem, nos €3 milhões, respetivamente. Para Rita Soares, na verdade, a prioridade é cuidar do passado, presente e futuro da propriedade que, apesar de ter sido adquirida, sente como algo que lhe foi parar às mãos enquanto depositária e curadora do seu legado, que deseja que perdure.

Os desenhos dos rótulos dos vinhos sãos feitos pelos filhos (dos sete aos 22 anos) dos dois casais de irmãos da família Soares

Talvez por isto refira sem hesitar que o tempo e a sua passagem é aquilo que a Malhadinha tem de mais singular. Seja através da partilha com os hóspedes da história deste lugar como no convite à vida sem pressa, valorizando o verdadeiro luxo da herdade: os atributos naturais que aqui existem e acompanham o decurso do tempo. Ainda é cedo para pensar na passagem de testemunho para os próximos depositários da Malhadinha. A maioria da nova geração Soares (filhos dos dois casais de irmãos, proprietários da herdade) ainda não atingiu a maioridade. Benjamim Franklin dizia que paz e harmonia são a verdadeira riqueza da família. Na Herdade da Malhadinha Nova, a riqueza da família ergue um lugar de paz e harmonia.

Herdade da Malhadinha Nova

Diária por noite, com mínimo de duas noites (a partir de €250 até €550)

Obrigatória reserva completa na Casa das Artes e Ofícios (€900, duas suites), da Ribeira (€1350, três suites) e Venda Grande (€600, quatro quartos)

Albernôa

7800-601 Albernôa

Tel. 284 965 432

reservas@malhadinhanova.pt

www.malhadinhanova.pt