Crónica

#AlanKurdi 1. Ainda que ninguém note que ali está

Durante o mês de setembro o Expresso está a bordo do navio de salvamento e resgate Alan Kurdi, operado pela Organização não governamental alemã Sea-Eye, durante a missão no centro do mar Mediterrâneo. Esta é a história de uma moldura e de uma santa que ninguém notou, mas que tem mais significado do que cuidado

João Carlos Santos

A moldura pequena é-lhes indiferente. Passam por ela dezenas de vezes ao longo do dia mas estou quase certa que nenhum deles notou que ali estava. É daqueles porta-retratos que encontramos na casa dos avôs, cheio de torneados e floreados em cor de prata. Em casa da D. Conceição, a minha avó, ainda havia uns quantos. Todos polidos, espalhados pelas várias comodas e mesas, muitas com um pequeno naperon por baixo. Uma moldura bonita por cada neto. Naquele cuidado todo havia algo de sagrado, quase como pequenos altares.

A este falta-lhe o amor de uma avó. Está sujo e meio que perdido. E em vez de netos, sorridentes vestidos com a sua melhor roupa, uma impressão da Nossa Senhora do Carmo já com a cor queimada pelo sol. Uma moldura como aquela, atada de forma tosca na escada à entrada de um navio era relíquia que nunca tinha encontrado. “Não faço ideia do que seja aquilo”, diz Joshua, o primeiro oficial do navio, que demorou uns segundos até perceber do que estava a falar. E de imediato eleva a voz para o membro da tripulação mais próximo e pergunta: “sabes o que é aquilo?”

Confirma-se: ninguém tinha reparado na santa.

A escada foi emprestada por alguém do porto de Burriana, no sul de Espanha. É aqui que a tripulação e os voluntários da nova missão do navio de resgate e salvamento Alan Kurdi vão partir nos próximos dias. Por agora entram e saem – e passam pela santa – dezenas de vezes. Ora para levar um banco para pintar, ora para o trazer já pintado. Outra vez para carregar os mantimentos que ainda faltam, outra para tirar o lixo que se vai acumulando das obras que ainda decorrem.

Cheira a tinta, ouvem-se máquinas a funcionar. Todos esperam pelo começo da semana, que a vistoria das autoridades espanholas seja feita e que então possam fazer o que todos eles vieram aqui fazer: navegar para o centro do Mediterrâneo e ajudar aqueles que tentam chegar à Europa pela rota mais mortal do mundo.

A santa a que nenhum deles liga, diz-me a internet, é a padroeira dos pescadores e daqueles que saem para o mar. Conta-me também que o seu milagre foi salvar milhares de pessoas durante um terramoto numa terra onde cada casa ruiu e nada sobrou. Ali viviam 15 mil pessoas e a Nossa Senhora do Carmo apenas não conseguiu salvar nove. Como uma santa que fez um milagre da salvação num terramoto se tornou padroeira de homens do mar? Nem eu nem a internet sabemos explicar.

Cada um dos 17 homens e cada uma das três mulheres do Alan Kurdi quer ir salvar pessoas - não de um terramoto mas de outras intempéries da vida. Afinal, apesar de pouco cuidado, a moldura cor de prata também é uma espécie de altar. Ainda que ninguém note que ali está.