Martim Moniz, 8 de novembro de 2024. Operação policial mediática num dos locais mais frequentados por estrangeiros (não qualificados) em Lisboa. Objetivo: reforçar as “perceções de segurança” da população. Resultado: encontrado um (!) imigrante em situação irregular, em cem fiscalizados. Nada que desmotive o Governo. O ministro da Presidência, António Leitão Amaro, referiu no Parlamento ter dado instruções às forças de segurança para reforçar a fiscalização contra a imigração ilegal. O país não pode “viver à sombra da bananeira” em matéria de segurança, reforçou o primeiro-ministro. Em comunicação em horário nobre, a 27 de novembro, anunciou solenemente a realização de 170 operações, que envolveram mais de quatro mil efetivos, em que terão sido fiscalizadas mais de sete mil pessoas. Quantas estavam em situação irregular? Ficámos (convenientemente) sem saber.
Qual a razão de ser da omissão de Luís Montenegro? A resposta é simples: o número de imigrantes em situação irregular em Portugal é residual. O resultado da operação de fiscalização no Martim Moniz não foi um acaso. Encontrar um imigrante ilegal foi, na verdade, um golpe de sorte. Terá sido, com elevada probabilidade, alguém que apresentou um documento forjado, ou que terá entrado no espaço Schengen num outro Estado-Membro e só posteriormente se terá deslocado para Portugal.
O estranho caso do imigrante ilegal no Martim Moniz é o resultado de uma política de imigração sem rumo. No início de junho, com o objetivo professo de acabar de vez com a política socialista de “portas escancaradas”, o Governo eliminou as chamadas manifestações de interesse. No final de junho, todavia, renovou um dos pilares fundamentais da ideia de que Portugal pode e deve “acolher o mundo” (o mantra infantil da então Ministra Ana Catarina Mendes), mantendo em vigor, até 30 de junho de 2025, a legislação que declara válidos documentos e vistos que tenham expirado depois de 22 de fevereiro de 2020. Este foi um regime jurídico excecional, adotado em tempos de pandemia, com o propósito de não deixar cidadãos estrangeiros em situação irregular por força de os serviços competentes se encontrarem a funcionar com limitações, fundamento que manifestamente já não procede aos dias de hoje e que, ao fim e ao cabo, acaba por permitir fazer entrar pela janela aquilo que se pretende evitar que entre pela porta, ao abolir-se a manifestação de interesse.
O que resulta da articulação das duas intervenções legislativas estivais? Um cidadão brasileiro que chegue hoje do Brasil a Portugal sem visto – ou um cidadão guineense com visto de turismo – pode permanecer regularmente em Portugal até ao final de junho, uma vez expirado o prazo de 90 dias de permanência autorizada. Deixou apenas de ter acesso a um mecanismo de regularização permanente (as manifestações de interesse). Terá, ainda assim, a expectativa de renovação dos seus documentos expirados.
O passaporte ou o visto caducado são, em alguns casos desde há cinco anos, títulos válidos de permanência em Portugal. Está, portanto, aberta a porta da nacionalidade portuguesa a turistas que tenham chegado imediatamente antes da pandemia e por cá tenham ficado sem qualquer autorização de residência. Esta é uma situação absolutamente aberrante, que é, para além do mais, violadora do direito da União Europeia. A legislação pandémica, renovada anualmente, transforma o passaporte ou o visto caducado num título de residência encapotado, sujeito a uma restrição de circulação circunscrita ao território nacional que, fora dos casos excecionais de controlo permanente da fronteira terrestre, não é obviamente fiscalizável eficazmente pelo Estado português. Restrição geográfica análoga prevista nas autorizações de residência CPLP serviu, aliás, de fundamento a um procedimento por infração iniciado contra Portugal pela Comissão Europeia.
A extinção das manifestações de interesse veio criar uma nova casta de imigrantes que vivem num limbo, sem perspetivas de regularização. Não podem ser importunados nas rusgas policiais, mas dificilmente conseguirão celebrar contratos de arrendamento ou de trabalho, por não terem um título de residência. São, sem surpresa, as vítimas perfeitas das redes de exploração laboral e de tráfico de seres humanos.
É inadmissível a ausência de qualquer política pública direcionada aos que chegam diariamente ao nosso país com a expectativa de aqui permanecerem à espera de uma renovação anual dos seus documentos expirados – mas válidos para efeitos de permanência – ou de uma regularização extraordinária que lhes permita obter uma autorização de residência. Serão, seguramente, várias de dezenas de milhar e estarão, na sua grande maioria, integrados no mercado de trabalho.
Poder-se-á argumentar que estas pessoas não são dignas de tutela porque não utilizaram os meios adequados de entrada e permanência em Portugal. Afinal de contas, as portas continuam teoricamente “escancaradas”, na medida em que um visto de procura de trabalho pode ser pedido em qualquer consulado português. No caso dos nacionais de Estados CPLP, os requisitos para a emissão deste visto são, para além do mais, triviais. Acontece, porém, que esta política de “portas abertas” é virtual. O colapso da rede consular portuguesa – e a manifesta incapacidade de a reformar – impede, na prática, a entrada dos fluxos migratórios de que o país necessita. Assim o comprova o anúncio governamental da última semana de criar uma espécie de “via verde consular” para empresas, que permita a entrada de dezenas de milhar de trabalhadores não qualificados.
Os imigrantes ilegais foram um dos grandes temas de campanha nas eleições americanas de novembro. Trump venceu com uma retórica desumanizante, caricaturando-os, no debate televisivo com Kamala Harris, como membros de gangues venezuelanos comedores de animais de companhia. Prometeu uma deportação em massa, a partir de 20 de janeiro. É uma promessa que tentará seguramente cumprir.
Relacionar problemas de segurança com imigração ilegal é, em Portugal, absurdo, pela simples razão de que não há um número significativo de imigrantes em situação irregular. Utilizar massivamente os recursos (escassos) dos serviços de segurança do Estado para encontrar a agulha no palheiro, com o fim de melhorar das “perceções de segurança” da população, constitui – não há como negá-lo – uma infeliz deriva trumpista.