Opinião

As ex-colónias entre as reparações de Marcelo e as intenções de Putin

O mundo é um lugar realmente pequeno: como podem as “reparações” de Marcelo influenciar a sobrevivência da CPLP, por um lado, e a “Putinização” das ex-colónias portuguesas em África, por outro?

A invasão russa da Ucrânia em fevereiro de 2022 tem vindo a proporcionar várias e infelizes revisitações ao passado e, muito concretamente, ao período da Guerra Fria. Do regresso à sensação de um mundo dividido em dois blocos, ao uso do trunfo nuclear como elemento discursivo de dissuasão, estamos hoje inequivocamente mais próximos daquela época em que americanos e soviéticos disputavam a dianteira da corrida ideológica, militar e tecnológica no mundo.

Recentemente, um novo capítulo desta ficção regressiva histórica tomou a nossa atenção, assim como a dos media. O Presidente Marcelo começou por desenterrar o assunto da já empoeirada década de 1970 e o Kremlin, dias depois, aproveitou para soprar sobre essa poeira. Este é, claro, o capítulo não-alinhado de uma guerra que está a ser feita na Ucrânia, mas que também está a ser diplomática e estrategicamente jogada fora dela.

Poucos dias depois de Marcelo Rebelo de Sousa ter sugerido que Portugal deveria fazer reparações às/nas suas ex-colónias, Moscovo firmava um acordo militar com São Tomé e Príncipe com vista ao reforço da cooperação conjunta dos dois países em matéria de recrutamento e armamento, mas também nas áreas da educação, informação e cidadania. Em Portugal e no mundo inteiro, a polémica em torno das declarações de Marcelo prende-se sobretudo com uma questão de dúvida e incerteza, porque o significado e profundeza do caráter reparador a que se referiu o senhor Presidente permanece, julgo que até ao dia de hoje, indefinido.

Fora a discussão tribal que este assunto já fomentou e continua a fomentar, ele também acarreta um conjunto de consequências ao nível das relações de Portugal com as suas ex-colónias, que por sua vez têm um impacto que pode ser menos evidente no contexto da Guerra Fria 2.0 que estamos hoje a viver. Eis algumas reflexões acerca desse impacto.

O cidadão português estará porventura mais atento ao debate doméstico que esta polémica envolve, do que aos paralelismos históricos que ela permite estabelecer. Quem é que vai pagar essas reparações? Porque é que temos de reparar um erro que não cometemos no nosso tempo de vida? O Presidente pode colocar-nos nesta situação? As ex-colónias estão a aproveitar-se da extroversão (no nosso país comummente adjetivada como algo excessiva) do chefe de Estado da antiga metrópole?

De um modo geral, estas são as questões internas, morais e logísticas de que ouvimos falar ultimamente em qualquer espaço social em Portugal. Ninguém se pergunta, porém, em que é que pode derivar esta nova tensão entre Portugal e as suas ex-colónias, por exemplo, no contexto da CPLP ou da guerra que a Europa está a travar com o imperialismo Putinista. Nestas duas esferas, ver a Rússia assinar um documento de cooperação, seja ela de que ordem for, com um país como São Tomé e Príncipe significa, respetivamente, um falhanço diplomático português e um triunfo propagandístico russo.

Apesar de muito anterior a esta época, o interesse russo no continente africano intensificou-se fortemente no período das descolonizações, a partir das décadas de 1950/60. O afastamento das metrópoles europeias dos seus territórios em África abriu caminho para um fosso moral, ideológico, político, económico e social que os soviéticos, sob a égide do Comintern, prometiam poder reparar. Nikita Khruschev foi o rosto destas promessas, numa altura em que a eficácia do expansionismo soviético nos países terceiro-mundistas chegou mesmo a preocupar a Casa Branca.

Os anos 1970 assistiram ao apogeu da mancha encarnada em África, com a União Soviética a estabelecer acordos e parcerias com mais de 3 dezenas de países no continente. Da ajuda financeira aos projetos educativos e de infraestruturas melhoradas nestes países, a desilusão não tardou, porque estas promessas nunca passaram disso mesmo. Como é que um país tão economicamente ineficiente, onde não se podia ler livros “proibidos” nas universidades, poderia contribuir para a emancipação de outros países?

A tarefa de recuperar esta dinâmica de exercício de influência além-fronteiras, que é de resto um elemento paradigmático da Guerra Fria, para o debate e circunstâncias atuais está hoje muitíssimo facilitada: primeiro, pela falta de cautela de Marcelo Rebelo de Sousa que, querendo ou sem querer, instaurou entre o país que representa e as suas antigas colónias um ambiente não de reconciliação, mas de hostilidade; segundo, pelo oportunismo russo que, compreendendo este ambiente, procurará explorá-lo à boa moda soviética dos anos 1950/60/70.

Transportada para uma macro interpretação, a má relação de Lisboa com as capitais das ex-colónias significa um desligamento destes países relativamente à leitura e objetivos portugueses no âmbito de questões como o apoio à Ucrânia, por exemplo. Desde que estas ex-colónias se tornaram Estados soberanos e independentes, passaram naturalmente a fazer as suas próprias opções na agenda e na política internacionais. Mas uma parte dessa agenda passa, pelo menos desde 1996, por um certo “alinhamento básico” entre Lisboa e estes países (1996 é o ano que marca o nascimento da CPLP). Não seria quase constrangedor ver sentados à mesma mesa os Países de Língua Portuguesa, com uma parte deles a defender a soberania ucraniana e outra parte a fazer acordos com a potência que coloca em causa esta soberania?

É por isto que o avanço propagandístico russo em África é sinónimo de um perigoso falhanço diplomático português. O que está em causa não é a falta de capacidade portuguesa para influenciar as antigas colónias no sentido de apoiar um país que foi invadido, mas antes a capacidade russa para aproveitar um momento de tensão por Portugal causado para afastar estes países da leitura portuguesa-Ocidental do conflito na Ucrânia (só porque essa leitura é a portuguesa). Por tudo isto, o que vemos é também uma exposição muito clara do caráter ilusório da CPLP. Afinal, que papel tem Portugal no seio desta comunidade? E em que lugar moral ficará o nosso país por fazer parte dela, no momento em que os demais membros já tiverem sido engolidos pela propaganda russo-soviética?

O desejo russo de intervir em África é cada vez mais óbvio e deve motivar a preocupação dos Aliados na Europa e no Ocidente, em primeiro lugar porque a Rússia dispõe de recursos para resolver rapidamente parte dos problemas que assola os governos e sociedades africanos. Pense-se, por exemplo, na influência e popularidade do antigo Grupo Wagner no continente. A ameaça terrorista tem vindo a colocar vários Estados em África na posição de aceitar todo o tipo de metodologias para resolver a instabilidade e a anarquia pelo terrorismo promovidas.

Uma dessas metodologias, talvez a mais eficaz, é a força mercenária que o Kremlin pode oferecer a estes governos e a estas sociedades (ao contrário da Europa e do Ocidente). Não reconhecer o crescimento da influência russa em territórios não protagonistas, assim como não reconhecer o impacto que as declarações do Presidente da República podem ter num contexto que não é apenas o português, é um erro grave e acarretará um preço.