No programa que fez sufragar e que revalidou no Parlamento, o governo da AD promete “a revogação das medidas penalizadoras do alojamento local”, bem como “a revisão das limitações legais impostas pelo governo socialista”. Uma promessa suficientemente vaga para não se comprometer com nada em particular, mas suficiente concreta para nos alarmar.
Em campanha, Luís Montenegro já tinha escolhido como bandeira a reversão do “ataque desferido ao alojamento local”, garantindo até que “quem diz que rouba espaço à habitação não sabe do que está a falar”.
Vamos então falar a sério sobre aquilo que o primeiro-ministro, que nunca foi autarca nem precisou de arrendar casa, teima em não reconhecer. Comecemos por dar rosto à situação dramática que já se vive. Em Alcântara, freguesia de Lisboa onde sou autarca, um casal de funcionários públicos com duas filhas recebeu pelo correio o “convite” para abandonar a casa onde vive até ao final do ano. O rendimento de 1900 euros suportou, até aqui, os 600 euros de renda, mas não acompanha os novos valores de mercado. Só encontram casa que podem pagar em Vila Franca de Xira. Uma mãe solteira, desempregada e beneficiária de Rendimento Social de Inserção, também foi informada da indisponibilidade do senhorio para renovar o seu contrato de arrendamento. O senhorio, uma empresa de administração de bens imóveis, vendeu o prédio a outra empresa, que por sua vez já o revendeu. Um ano e três senhorios depois, esta mãe e a sua filha menor vivem alternadamente entre casas de familiares e amigos. Mas temos também o caso de uma trabalhadora a tempo inteiro, a auferir o salário mínimo nacional, incapaz de arrendar casa e que é forçada a viver num carro funerário abandonado. Estes são casos reais que enfrentam as consequências do êxtase artificial em que vive o imobiliário.
As medidas “penalizadoras" criadas pelo governo socialista não se destinavam, obviamente, a desferir qualquer “ataque” a uma atividade legítima e válida. Limitar novas licenças, um período mais curto para as que já estavam em vigor, ou a impossibilidade da sua transmissão, tinham outro objetivo: disponibilizar oferta num mercado tão saturado que não deixa casas para quem precisa delas para viver - e não para fazer turismo.
É evidente que a crise na habitação não foi provocada apenas pelo fenómeno do alojamento local, que até teve a vantagem de ajudar na recuperação urbana de muitas cidades. Mas, chegados a este ponto também por inação de quem devia construir um parque imobiliário público, é inegável que esta modalidade de arrendamento aquece, e muito, o mercado da habitação. É o que nos mostram as experiências vividas noutros países, que também tiveram de adotar medidas restritivas - e algumas bem mais drásticas do que as que foram ensaiadas por cá.
Nova Iorque apertou as regras que já estavam em vigor há anos. Desde setembro que arrendamentos de curta duração só são permitidos se o hóspede partilhar a mesma habitação como proprietário, e são proibidos mais de dois hóspedes de cada vez, em cada alojamento. No Brasil, uma deliberação do Supremo Tribunal de Justiça determinou que o direito individual não se pode sobrepor ao coletivo. No caso, condomínios que designem a sua finalidade como residencial estão a interditar o aluguer através de plataformas digitais. E na União Europeia, onde o alojamento local já representa 1/4 de todo o alojamento turístico - e fez disparar os preços da habitação, deslocou residentes, criou um excesso de turismo e permitiu a concorrência desleal - foram aprovadas recentemente novas regras para o setor. Face ao contexto internacional, a promessa que o governo da AD se prepara para pôr em prática vai ser feita em contraciclo.
Desde que em 2009 os primeiros alojamentos da capital portuguesa passaram a estar registados em plataformas como o Airbnb, a cidade mudou drasticamente. Um livro lançado em 2019 já alertava para que, se todos os estabelecimentos estivessem ocupados na sua capacidade máxima, haveria mais visitantes do que residentes a dormir nas freguesias lisboetas - e isto sem contar com turistas instalados em hotéis, que no espaço de uma década já tinham triplicado.
Os impactos para a cidade e para quem vive nela estão longe de ser apenas económicos, embora esses sejam os mais fáceis de quantificar. A ameaça sobre a qualidade de vida e a expulsão de residentes impunha medidas como as que foram tomadas. Anulá-las agora, para responder às exigências de uma minoria, vai ter consequências para todos. Lisboa será das primeiras cidades a sentir o impacto desta reversão. E de uma coisa podemos estar certos: não vai ser bonito de ver.