Opinião

Uma questão de valores

Quando nos demitimos de pensar e questionar, quando banalizamos e relativizamos aquilo que de errado acontece, os movimentos radicais prosperam e qualquer tipo de populismo torna-se apelativo, independentemente da sua coerência ou ética que de facto não têm

Este ano, a 10 de dezembro, a Declaração Universal dos Direitos Humanos fará 75 anos. Uma data que seria sempre importante, mas que ganhou ainda maior relevância com o momento que vivemos, com um conflito a escalar no médio oriente a acrescer à guerra na Ucrânia. É mesmo importante pararmos para pensar no que significa este singelo documento com 30 artigos, que foi um dos maiores compromissos internacionais de sempre e que marcou o mundo do pós-segunda guerra mundial e as nossas gerações, com o propósito de garantir que as atrocidades cometidas em tempo de guerra nunca mais voltassem a acontecer. Estrutura-se em torno de um conjunto de direitos universais, indivisíveis e inalienáveis, inerentes a todos os seres humanos, reconhecendo igual dignidade a cada pessoa e tem sido catalisador do progresso civilizacional, por exemplo, em relação aos direitos das mulheres, das crianças, ou na promoção da abolição da pena de morte em muitos países.

A Declaração incorpora um conjunto de valores que procuram ser um modelo para todos os países e todos os povos, independentemente de credos ou formas de organização social, a base para leis e políticas e que sustentam aquele que é um dos documentos mobilizadores da comunidade internacional nos dias de hoje, a Agenda 2030 da ONU para o Desenvolvimento Sustentável. Mas a verdade é que, em muitas regiões do mundo, as ameaças aos direitos humanos são constantes. O aumento da pobreza, a diminuição do espaço cívico, os ataques à liberdade de imprensa, o aumento da violência contra mulheres, o racismo, a intolerância e a discriminação têm aumentado, ao que acrescem as ameaças associadas à crise climática e a algumas novas tecnologias, como a Inteligência Artificial.

A defesa e a promoção dos Direitos Humanos é uma luta diária, porque nada está garantido. A Declaração tem de fazer prova de vida todos os dias e todos os que a defendem também. E não se pense que é um problema dos outros ou apenas de cenários de guerra: também dentro das nossas fronteiras, a retórica do ódio tem feito o seu caminho, as crises têm aumentado o risco de pobreza, e a descrença no sistema democrático, em particular nos seus representantes, parece ser hoje uma evidência. Os direitos e liberdades fundamentais reconhecidos pela nossa Constituição não estão a salvo de qualquer perigo e carecem de uma defesa permanente, num esforço que a todos tem de mobilizar. Não podemos esquecer que a luta pelos direitos humanos é a luta pelos valores da nossa civilização, a base de uma sociedade democrática, justa e inclusiva, que não se construirá sozinha e que pode autodestruir-se se nos limitarmos a observar e a lamentar.

O tema do Dia dos Direitos Humanos deste ano é “Dignidade, Liberdade e Justiça para Todos”, com uma chamada à ação com o lema #StandUp4HumanRights, um lema consequente com o apelo do Secretário-Geral da ONU aos Estados-membros, à sociedade civil, ao setor privado e a todos os agentes para que ponham os Direitos Humanos no centro dos esforços e políticas. É esta tónica de responsabilidade coletiva que quero sublinhar.

Vivemos numa época de movimentos que estimulam o ódio contra grupos, sejam étnicos, religiosos ou políticos, um comportamento que é normalizado pela alegada falta de eficácia do “sistema”, esquecendo que o mesmo não é mais do que a estrutura social de que todos fazemos parte. Ora a normalização deste tipo de comportamentos prejudica gravemente a democracia, bem como a compreensão de cada pessoa sobre aquilo que é ou não correto. Quando nos demitimos de pensar e questionar, quando banalizamos e relativizamos aquilo que de errado acontece, os movimentos radicais prosperam e qualquer tipo de populismo torna-se apelativo, independentemente da sua coerência ou ética que de facto não têm. Por isso, é tempo de revisitar o conceito da “banalidade do mal”, que Hannah Arendt, filósofa judia de origem alemã, popularizou. Todos temos a liberdade e a responsabilidade de tomar decisões éticas e justas, que visem o interesse comum. Mas se tivermos uma sociedade incapaz de fazer julgamentos morais, que se demite das suas responsabilidades, tenderá a aceitar e cumprir ordens sem as questionar, tornando banal o mal que possam causar. Não queremos voltar a esse lugar.

Da mesma maneira que se queremos viver numa democracia temos de participar ativamente na vida democrática, se defendemos os direitos humanos temos de o fazer de uma forma ativa, permanente e intelectualmente honesta. Se não o fizermos, mais cedo ou mais tarde, estarão em causa mesmo à nossa porta e, nessa altura, poderá não haver ninguém para nos ajudar nessa defesa. Com pensamento crítico e ética pessoal e política, #StandUp4HumanRights sempre e a todos os momentos.