Opinião

Ouçam ao menos António Guterres

O que está a acontecer em Gaza, perante os nossos olhos, é um crime de genocídio. A urgência é um cessar-fogo imediato. E depois disso, com esse cessar-fogo humanitário, falemos de justiça e de paz e do inalienável direito à autodeterminação.

No meio do horror e da agonia dos últimos dias, precisávamos que os poderosos do mundo ouvissem as palavras de António Guterres, que apelou na quarta-feira a um cessar-fogo humanitário imediato no médio oriente. O Brasil, que atualmente preside ao Conselho de Segurança da ONU, ouviu-o. E fez um esforço nesse sentido. Até ao limite.

A posição que o Brasil propôs ao Conselho de Segurança da ONU era um lampejo de esperança. Condenava os atos terroristas do Hamas, pedia a libertação dos reféns israelitas, exigia a ambos os lados a proteção da população civil, denunciava os ataques indiscriminados de Israel sobre Gaza, apelava que Israel abandonasse a ordem de evacuar o norte de Gaza, apelava a um cessar-fogo e a um corredor humanitário. Sob a pressão da Casa Branca, que rejeita o apelo de Guterres para que se páre a matança em curso, o Brasil chegou a retirar a expressão “cessar-fogo”, tendo-a substituído por "pausa humanitária" (com o fim da ordem israelita de evacuação de civis e permitindo a distribuição de alimentos e medicamentos). Nem assim o voto passou.

Os EUA derrubaram, sozinhos, a proposta do Brasil. Dos outros 14 membros do Conselho de Segurança, 12 votaram a favor e 2 abstiveram-se. Israel já agradeceu ao governo de Biden o boicote à “pausa humanitária”. O horror, portanto, continua.

“Travar a morte em Gaza”, escreve Alexandra Lucas Coelho num artigo de hoje no Público, “é honrar enfim a memória do Holocausto”. Tem razão: “essa memória foi traída até chegarmos a isto: 2,3 milhões de pessoas trancadas num gueto, bombardeadas dia e noite, metade das quais deslocadas, sem água, comida, assistência”.

O que está a acontecer em Gaza, perante os nossos olhos, é um crime de genocídio. A condenação inequívoca dos crimes que o Hamas perpetrou no dia 7 de outubro não pode ser um livre-trânsito para a matança que está a acontecer desde então. Só na primeira semana de retaliação, o Estado de Israel lançou seis mil bombas sobre Gaza, quase tantas quantas as que a NATO utilizou durante toda a guerra na Líbia. A Human Rights Watch confirmou o uso de fósforo branco, munição proibida em áreas de grande densidade populacional. O cerco total que o governo de Israel tem imposto desde 9 de outubro à população de Gaza - privada do acesso a energia, a comida, a água, a bens de primeira necessidade, privada até do direito de fuga - é um imperdoável crime de guerra.

Dos dois milhões de habitantes de Gaza, metade dos quais crianças, cerca de um milhão já perdeu ou teve de abandonar as suas casas, mais de 2600 pessoas foram assassinadas pelos ataques israelitas, 12 jornalistas perderam a vida, 14 funcionários da ONU e 5 do Crescente Vermelho foram mortos. Em Jerusalém Oriental e na Cisjordânia, as forças militares israelitas e colonos armados têm aumentado a violência sobre civis.

Israel impõe, há vários anos, um regime de apartheid. Não se trata de uma opinião minha, mas de uma constatação de organizações como a Human Rights Watch e a Amnistia Internacional. Existe, na Palestina, uma ocupação ilegítima e colonial feita à margem da lei internacional. Este facto também não é matéria de opinião, é a posição de dezenas de resoluções da ONU e até de instituições europeias. Só que agora estamos ainda pior do que o status quo de opressão e violência. À injustiça e impunidade históricas, às quotidianas atrocidades de tantos anos, soma-se este novo delírio bélico, a punição coletiva da população de Gaza, uma prática que está definida pelas Convenções de Genebra como crime de guerra.

É por isso que precisamos tanto de vozes razoáveis, capazes de rejeitar esta espiral de sangue e de barbárie. Ao contrário do que defenderam os EUA e alguns países europeus, e a senhora von der Leyen, para quem o sangue palestiniano vale muito menos que o sangue israelita, o que está a acontecer não é o exercício do “direito à autodefesa” por parte de Israel. É um massacre, um horror, uma sucessão de crimes, que têm de ser parados já.

Que a Europa ouça, ao menos, Guterres. Que o governo português, ao menos, ouça Guterres. Que o mundo ouça Guterres. A urgência é um cessar-fogo imediato. E depois disso, com esse cessar-fogo humanitário, falemos de justiça e de paz e do inalienável direito à autodeterminação. Ou seja, de uma comunidade internacional que, sem sentimentos de culpa que a transformem em cúmplice de novos crimes, imponha a Israel o fim da política de ocupação, de limpeza étnica e do apartheid. Só assim poderá começar a construir-se uma paz duradoura.