Opinião

Um exemplo do que não se deve fazer

Como as funções administrativas do SEF passaram para a AIMA e a AIMA ainda não funciona, há mais de 300.000 processos por tratar que ninguém trata e as pessoas que se amanhem

A ideia de separar, no âmbito das funções do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), as funções administrativas das funções policiais, fazia sentido. Os cidadãos estrangeiros residentes em Portugal ou que cá permaneçam não devem ser tratados como casos de polícia. Se eu não tenho de ir a uma esquadra da PSP para renovar o cartão de cidadão também não faz sentido que um cidadão estrangeiro tenha de se deslocar a uma polícia para renovar a autorização de residência.

Dito isto, não haveria, em princípio, nenhum problema em autonomizar as funções administrativas do SEF mesmo que essa autonomia se traduzisse na criação de uma nova entidade, separada do SEF, mas que mantivesse com este uma relação de coordenação designadamente em matéria de troca de informações necessárias à prossecução das funções de ambos os serviços.

Quando o Governo PS decidiu extinguir o SEF fê-lo sob o pretexto da separação entre funções administrativas e policiais, mas todos sabemos que a razão não foi essa. Tinha sido cometido um crime hediondo por elementos do SEF nas instalações do aeroporto de Lisboa (o assassinato do cidadão ucraniano Ihor Homeniuk) e o Governo reagiu tarde e a más horas quanto ao apuramento das responsabilidades internas que se impunham e quanto ao ressarcimento dos familiares da vítima.

Perante a situação de fragilidade em que se encontrava, o Ministro Eduardo Cabrita ensaiou uma fuga para a frente: extinguir o SEF sem querer saber, à partida, das desvantagens dessa medida e das dificuldades com que a sua execução iria deparar.

No plano legislativo, o Governo obteve o apoio necessário para a decisão de extinguir o SEF e criar a Agência para a Integração, Migrações e Asilo (AIMA) mediante um acordo com o BE. O pior viria depois.

A extinção do SEF criava desde logo uma situação problemática. Tratava-se de extinguir um serviço de segurança muito especializado, com grandes responsabilidades no domínio da segurança pública e com décadas de experiência, e redistribuir as suas competências pela PJ, pela PSP e pela GNR sem que essa transição tivesse consequências indesejáveis em matéria de segurança. Não era fácil.

Por outro lado, a integração dos profissionais de um serviço de segurança em outras forças com características e estatutos muito diversos não deixaria necessariamente de trazer dificuldades.

A primeira consequência foi o adiamento da extinção do SEF já na presente legislatura. A decisão de integração do pessoal de investigação do SEF na Polícia Judiciária acabou por se impor como a solução viável tendo em conta que a sua integração na PSP ou na GNR implicaria uma perda significativa de direitos designadamente em matéria sindical.

Ficaria a ganhar a PJ com o acréscimo de efetivos. Ficariam a perder a PSP e a GNR com novos encargos na vigilância das fronteiras terrestres, marítimas e aeroportuárias, sem que houvesse o correspondente aumento de efetivos. Entretanto, enquanto a extinção não se consumasse, os elementos do SEF destacados nos portos, aeroportos e fronteiras terrestres, permaneceriam por lá.

Eis que a poucos dias da consumação da extinção do SEF, esses elementos ficaram a saber por Despacho do MAI, que, apesar de terem sido formalmente integrados na PJ, continuariam a funcionar onde estão, afetos à PSP e à GNR. Numa palavra: uma trapalhada sem nome.

E para garantir alguma articulação em tudo isto, teve o Governo lá teve de criar uma nova unidade de coordenação policial em matéria de estrangeiros e fronteiras, a Unidade de Coordenação de Fronteiras e Estrangeiros (UCFE) já apelidada, e com razão, de “mini-sef”, integrada por 70 a 80 elementos da PJ que eram do SEF e comandada pelo Secretário-geral do Sistema de Segurança Interna que, nos termos da lei, não deveria ter funções de comando.

O maior problema, contudo, surgiu ao nível das funções administrativas que o SEF deixou de fazer e ainda não há quem faça, ou melhor, há quem faça mas ainda não faz.

O SEF, como outros serviços públicos, já se debatia com grandes dificuldades ao nível do pessoal administrativo. O acréscimo de trabalho decorrente da intensificação dos fluxos migratórios não foi acompanhado do aumento do pessoal correspondente.

Sucede, porém, que a transição do SEF para a nova agência significou a paralisação dos serviços administrativos. A AIMA já existe, já tem diretor, mas não funciona. Foi notícia há dias na comunicação social que estavam por atender 270.000 manifestações de interesse de cidadãos para serem atendidos e que só não são mais porque o sistema deixou de aceitar manifestações de interesse. Não fosse isso, seriam certamente mais de 300.000.

Esta situação tem gravíssimas consequências para os cidadãos afetados. Impossibilitados de tratar dos documentos que certificam a legalidade da sua permanência em Portugal muitos permanecerão em situação irregular com tudo o que isso significa na sua vida, por exclusiva responsabilidade da inércia do Estado Português.

Requerida pelo PCP a presença do Governo na AR para explicar o que tenciona fazer para resolver este problema, a resposta foi a recusa pela maioria parlamentar do PS. O raciocínio é simples: o SEF já não faz e a AIMA ainda não faz. E o Governo que tutela ambos não tem nada a dizer sobre isso. Estamos esclarecidos.