Opinião

Hemodiálise em Portugal: qualidade e inovação em perigo

A forma de pagamento por “preço compreensivo” em Portugal necessita de uma revisão urgente. A ideia não é gastar mais nem menos euros. É gastá-los melhor, para o bem de cada um dos nossos concidadãos

Portugal é o segundo país europeu e o décimo a nível mundial, com maior incidência (novos doentes por ano) a iniciarem diálise. Mas quando olhamos para a prevalência (número total de doentes que se mantêm em diálise) estes resultados ainda são mais avassaladores, pois passamos para o primeiro lugar a nível europeu e oitavo no panorama mundial, o que demonstra a qualidade dos tratamentos prestados a estes doentes, que lhes permitem manter longa longevidade em diálise.

Estes resultados têm, seguramente, múltiplas causas, incluindo o aumento da longevidade, a deficiente prevenção de doenças crónicas como a diabetes e a hipertensão arterial (principais causas de doença renal crónica), o aumento acentuado das comorbilidades, mas também opções religiosas, o apoio socio familiar, das paróquias, das autarquias, de diversas instituições de solidariedade social, que no seu conjunto promovem o enquadramento destes doentes, e lhes transmitem resiliência.

As estruturas do Serviço Nacional de Saúde nunca assumiram nem desenvolveram um programa nacional de hemodiálise, reservando essa atividade em cerca de 90% dos casos a entidades prestadoras privadas, de diversas dimensões, com quem estabelecem convenções, definindo unilateralmente o valor a pagar pelos tratamentos, e mantendo o controlo da abertura de novos centros de hemodiálise.

Em 2008 Portugal foi o 1º país europeu a implementar um inovador esquema de pagamento por “preço compreensivo”, que incluiu diversas parcelas, nomeadamente as sessões de hemodiálise, a medicação associada à terapêutica da doença renal crónica em diálise, e uma lista de exames auxiliares de diagnóstico. Mais tarde neste “cabaz” foi ainda incluída a construção e a manutenção dos acessos vasculares para hemodiálise. O pagamento por “preço compreensivo” implicava ainda o atingimento de objetivos clínicos (mortalidade, internamentos) e laboratoriais, que assegurassem a qualidade dos tratamentos prestados aos doentes. Importa salientar que estes objetivos são facilmente atingíveis.

O projeto inicial de pagamento por “preço compreensivo” permitiu uma relação “win-win” entre os diversos “stakeholders”: os doentes (grupo prioritário, com acesso a medicações inovadoras e otimização da diálise), os prestadores de diálise (estimulados a otimizar a gestão de um recurso pago atempadamente) e as autoridades sanitárias que garantiram a planificação antecipada dos gastos em hemodiálise (que implicavam cerca de 2,5% do orçamento anual para a saúde).

O projeto inicial de “preço compreensivo” pretendia estender-se a fases mais precoces de evolução da doença renal crónica, mas acabou por se concretizar apenas no pagamento dos tratamentos de hemodiálise e posteriormente de diálise peritoneal.

Outros países europeus, os EUA, o Canadá, a Austrália e a Nova Zelândia implementaram variados sistemas de “preço compreensivo”, com diferentes abrangências, mas com um traço comum em todos eles: excluíram o pagamento da medicação bem como dos salários dos nefrologistas. No sistema português, tal como em todos os restantes países europeus, o transporte dos doentes não está incluído no preço compreensivo.

Quando comparamos os diversos pacotes de “preço compreensivo”, desde a fase da sua implementação, verificamos que o mais próximo do português é o do Reino Unido, mas que mesmo este tem um valor de pagamento anual por doente, que é o dobro do português (40,000 € versus 20,000 €) e, mais relevante, não inclui a medicação nem os salários dos nefrologistas.

Em 2011 o Ministério da Saúde impôs, unilateralmente, que os custos com a obtenção e manutenção dos acessos vasculares (exceto o primeiro), bem como das transfusões de sangue e derivados, fosse incluído no pacote do “preço compreensivo”, sem qualquer revisão do valor do pagamento aos prestadores de diálise. Esta imposição representa um custo acrescido de cerca de 7 a 10%.

Pelo contrário, com a intervenção do Fundo Monetário Internacional, o Ministério da Saúde impôs cortes no valor do “preço compreensivo” de 10% em 2011 e outros 10% em 2012. Podemos assim dizer que estas 3 medidas implicaram uma redução direta de cerca de 30% no pagamento da hemodiálise.

Com base nos dados do Instituto Nacional de Estatística e da Entidade Reguladora da Saúde entre 2010 e 2021 houve um decréscimo real (incluindo a inflação) de 21% no valor do “preço compreensivo” da hemodiálise. Este valor é particularmente revelador das dificuldades vividas atualmente por este setor em Portugal, porque na mesma década se observou um aumento de 22%, nas despesas assistências do Ministério da Saúde.

Os principais prestadores de diálise (hemodiálise e diálise peritoneal) em Portugal, são os que se posicionam como líderes a nível mundial (com algumas diferenças de implantação em diversas geografias), nomeadamente a Fresenius Medical Care-Nephrocare, a Diaverum, a DaVita e a B. Brown.

A sua entrada no mercado nacional acompanhou-se dum significativo aumento da qualidade de hemodiálise, nomeadamente no controlo e tratamento da água e soluções dialisantes, na interrupção da reutilização dos dialisadores, na certificação internacional dos modelos de gestão clínica, no desenvolvimento da formação contínua obrigatória, na implementação de exigentes medidas de “compliance”. A dimensão e a capacidade técnica das equipas nacionais e internacionais destes prestadores, dificilmente se consegue obter em investidores nacionais de pequena dimensão.

Ainda podemos assegurar, na atualidade, que os critérios e normas técnicas e clínicas, efetuados nas clínicas destes prestadores, têm as mesmas exigências, que as realizadas pelas mesmas entidades na Alemanha, na Suécia, nos EUA ou no Canadá. Este é um requisito, da política de qualidade dos grandes prestadores, que estão expostos aos investidores nas principais bolsas americanas, europeias e asiáticas.

No entanto, face ao estrangulamento financeiro acima referido e ao aumento óbvio dos custos da energia, da água, dos dispositivos de proteção contra a Covid-19, da inflação, etc. é provável que estes prestadores deixem de ter interesse na gestão de unidades privadas de saúde e prefiram passar apenas para uma posição, mais cómoda e claramente mais rentável, de venda de produtos de diálise.

No mercado nacional a passagem da atividade de gestão de Serviços de Hemodiálise, para vendedores de produtos de Hemodiálise e Diálise Peritoneal, seria um movimento de claro retrocesso, “terceiro mundista” que, infelizmente, já se está a verificar em vários países da América do Sul.

A redução significativa da margem de exploração limita ainda, fortemente, o acesso dos doentes a qualquer inovação terapêutica, habitualmente com custos acrescidos. A qualidade de vida dos doentes portugueses tem sido inventariada em múltiplos inquéritos dos prestadores de diálise, que os incorporam, a nível global, na avaliação da performance das respetivas clínicas e equipas terapêuticas.

No entanto, face à evolução negativa do “preço compreensivo” em Portugal, facilmente se entende a quase impossibilidade de penetração das novas terapêuticas inovadoras para o prurido, para a anemia, para a hiperfosfatemia, para o hiperparatiroidismo secundário, ou mesmo a generalização da técnica de hemodiafiltração-on line, que por ser a que mais se assemelha à função renal dos rins nativos, demonstrou estar associada a menor morbilidade.

A forma de pagamento por “preço compreensivo” em Portugal, necessita de uma revisão urgente.

Nalguns casos implicará pagamentos mais elevados, noutros eventualmente mais reduzidos.

Tal como já é feito em vários países europeus, deverão ser definidos diferentes grupos de doentes, que implicam investimentos dialíticos e de terapêutica médica diferentes: em função da idade, da candidatura a transplantação, da atividade profissional, das comorbilidades, etc.

Só assim, conseguiremos restabelecer o lugar cimeiro, a nível mundial, na eficácia e resultados terapêuticos obtidos com os nossos doentes.

Não podemos esquecer os cerca de 40 anos de enorme sucesso da hemodiálise em Portugal, que permitiu a sobrevivência de muitas dezenas de milhar de portugueses e a transplantação renal de muitos milhares de hemodialisados.

Fomos os primeiros na Europa a criar o pagamento por “preço compreensivo”. Devemos estar na linha da frente para melhorar este modelo, sem receio, sem desconfianças, sem posições negociais irredutíveis.

A ideia não é gastar mais nem menos euros. É gastá-los melhor, para o bem de cada um dos nossos concidadãos.