Esta manhã, enquanto comprava os jornais, perguntei ao atento e informado filho dos proprietários do quiosque, de que cores eram as setas do símbolo do PSD.
Olhou para mim com um ar desconfiado e disparou – são cor de laranja, como toda a gente sabe!
O André, como se chama, tem dos símbolos partidários uma leitura superficial, como a maior parte dos jovens do tempo de hoje. Porém, as setas do símbolo do PPD/PSD, três, são de cor preta, vermelha e branca.
Já ouvi muitas opiniões sobre a construção desse símbolo. Pacheco Pereira e Pedro Roseta têm versões diferentes. Aquela que uso, por me parecer mais plausível, é a que remete para o sentido das cores. O preto seriam as raízes do anarquismo, o vermelho apareceria com as raízes marxistas e o branco seria a marca cristã da nossa civilização ocidental.
O PPD, depois PPD/PSD, nasceu como partido que se propunha fazer uma síntese. Uma espécie de coletor daquilo que Magalhães Mota, seu fundador, entendia serem os movimentos políticos que haviam atravessado o século XX.
Vem, esta primeira reflexão, como prelúdio da certidão de nascimento do Partido Socialista atual, em 1973. Sim, porque em 1875 havia nascido um outro Partido Socialista que reuniria homens tão relevantes como Gneco, Fontana, França, Batalha Reis e, o grande, Antero de Quental.
Este primeiro PSP nunca foi marxista, repudiava as visões totalitárias e desconfiava da luta de classes. Tinha, como sempre aconteceu, na sua principal preposição a emancipação do Homem, o fim do servilismo. Mas era completamente eurocêntrico, não contestava o império e a colonização, compreendia a vida de castas porque nela vivia. Soares dirá, em 1979, que este socialismo era uma realidade muito nossa, assente na visão política e social que alastrou depois da Revolução Francesa, mas agregado a um sentir comunitário que Herculano, não tendo nunca falado do socialismo ou de coisa parecida, sempre valorizou em Portugal.
Mais tarde, a partir do movimento Seara Nova e da União Socialista, durante e depois da Guerra Mundial, António Sérgio desenvolve a visão de Antero e faz com que os socialistas portugueses integrem, não uma visão meramente mutualista, mas essencialmente cooperativa.
Os socialistas portugueses sempre foram mais republicanos e antissalazaristas. Eram da burguesia, poucos da cidade e muitos do Portugal rural. O seu socialismo era uma ambição civilizacional, mas não era uma prática corrente. O servilismo existia nas casas de quase todos eles.
As candidaturas de Norton de Matos e de Humberto Delgado mostraram, em primeiro lugar, a ambição da democracia e da liberdade, mais do que qualquer esforço pela afirmação da igualdade.
Quando olhamos para a criação da Ação Socialista Portuguesa, 1964, o universo geral era de antifascistas, uns, muito poucos, revolucionários e a querer intervenção armada, outros dissidentes do botismo do Estado Novo, mas conviventes com ele.
As candidaturas da oposição, sem sucesso, da década de 1960, reúnem quase sempre profissionais liberais, como se compreende, porque possuidores de autonomia financeira e património para poderem fazer política.
Soares olha par tudo isto com a ambição de ter um partido democrático e social democrata, mas não encontra mão de obra suficiente.
Por um lado, como se verá mais tarde pelas indicações socialistas para os governos provisórios e pela constituição do primeiro governo constitucional, os quadros políticos do PS tinham pouco a ver com a abertura dos mercados depois da EFTA, tinham grande desconfiança quanto ao atlantismo e a questão das colónias tardaria a ficar clara.
Soares era uma mistura de atrevimento, intuição, coragem e cultura. Estas características em conjunto, muito raras num político do seu tempo, fizeram com que caminhasse pelo mundo, abrisse horizontes e começasse a construir um modelo de sociedade. Coimbra Martins haveria de ser um balsamo para a política e para o finório comportamento pessoal de Mário…
Quando olhamos para a lista dos fundadores do PS, aqueles que são mesmo fundadores, continuamos na oposição democrática da campanha de Delgado. Juntam-se jovens já com uma sustentação ideológica afirmada, marxistas ou não, mas todos influenciados negativamente pela visão estalinista que abastarda o socialismo científico.
Sempre me pareceu estranho que Mário Mesquita e Arons de Carvalho, os mais novos dos fundadores, tivessem votado contra a criação, ainda me Lisboa, do Partido, assumindo eu que os jovens quase nunca se importam com as coisas da clandestinidade que era o principal fator que implicava a transformação de uma associação (permitida) num partido (ilegal).
Como foi que Soares se preparou para a democracia e como fez a sua política nos anos anteriores e seguintes ao 25 de abril?
Há muito que Soares havia deixado o comunismo; há muito que se revia nos partidos trabalhistas, sociais democratas e, talvez menos, nos partidos socialistas do sul da Europa. O caminho era claro – democracia, liberdade, justiça social. Nunca abandonaria a trilogia.
O PS não tinha, na fundação nem depois, uma forte inserção no proletariado. Isso fez com que o PS fosse sempre um partido da burguesia, um partido com fortes preocupações sociais, mas sem a intervenção excessiva do Estado. Os velhos republicanos, de Macedo a Cal Brandão, de Seromenho a Bacelar ou Catanho, todos olhando Valle e oleados, de forma sempre muito cuidada, por Campos, suportavam e achavam graça a Mário Soares. Desse grupo, como mais tarde se viu, Salgado Zenha, Godinho, Barros e Gama Fernandes tinham uma visão menos dependente, talvez por considerarem que Soares era tão exemplar como incauto.
Soares era, porém, muito antecipador do tempo. Sabia que a revolução traria excessos, que o Partido Comunista, como única força de oposição organizada, iria tentar impor limitações à democracia liberal que ambicionava.
Nunca houve operários nas estruturas dirigentes do PS de forma nítida. Os quadros intermédios, da função pública à banca, seguros e serviços, viriam a ser o espaço de um socialismo diferenciador, onde toda essa gente cabia porque queria ter uma vida muito melhor. E liberdade…
Mas Soares não podia deixar de ter os jovens oposicionistas de uma esquerda mais marcada pelo marxismo, pela propriedade coletiva dos meios de produção.
Essa gente, que no primeiro congresso se reuniu em torno de Manuel Serra e nos anos seguintes em volta de Aires Rodrigues e Carmelinda Pereira, não teria sucesso. Vieram até mais tarde na JS, o segundo congresso da organização juvenil ainda teve uma forte presença trotskista, mas quase todos desmobilizaram.
Já como líder do Partido, inicia um processo de aproximação a uma esquerda socialista diletante, reunida em volta do MES. Sampaio, Cravinho, Galvão Teles, Vera, Ferro, andavam por aqueles lados, em reuniões ou em tertúlia.
Ribeiro Ferreira, engenheiro e ilustríssimo jornalista, na altura também por aquelas paragens, convenceu um operário a ser do MES e com ele passeava por Cascais. Havia, afinal, um exemplar raro no meio de tantos amigos de Alex naqueles anos de respiração e conspiração.
Para compensar, Soares fazia a ponte com antigos colaboradores do marcelismo, António Almeida Santos, como grande político que foi, sabia como limpar o passado de cada um e fazia valer o que ainda tinham para dar.
O PS chegou a ter o marxismo no seu programa? Claro que sim! E simpatizava com as nacionalizações e com a reforma agrária? De todos os documentos que hoje se conhecem e com a pratica dos governos de 1976/77 e de 1983/1985, não podemos retirar uma concordância.
Mas o programa era social democrata. O tal socialismo em liberdade, democrático ou moderno, como a cada tempo se foi consagrando. Nada coletivista, pouco estatista, muito solidário e redistributivo.
A passagem do velho núcleo de republicanos para a nova vaga que haveria de marcar o PS nas décadas seguintes acontece no congresso de 1979. Aí já estão os socialistas mais à esquerda como Sampaio ou Reis, os sociais liberais como Guterres ou Sousa Gomes, ou mesmo sociais democratas, como Constâncio.
As presidenciais de 1980/1981 vieram a partir este núcleo e Soares volta aos velhos companheiros e reforça o seu poder com os quadros da UGT. A moção Novo Rumo, que venceu, deixava na História e definitivamente os desvios revolucionários. E foi esse tempo que levou à primeira revisão constitucional de 1981/1981, que civilizou o regime, que consagrou a nossa democracia e que fez regressar Portugal ao seu espaço natural – a Europa.
Quando Constâncio é eleito líder já estava tudo assumido. Sampaio, como Ferro mais tarde, ainda tiveram estilos e discursos mais frentistas, o que não agradava muito ao PS do norte do país, sempre mais conservador.
Guterres, com as suas influências católicas, abriu o PS ao poder, consagrou a dimensão tripla de partido de governo, de poder local e de contrato social. Sócrates, Seguro e Costa não questionaram o PS de Guterres.
Há, porém, um novo tempo no PS. Este tempo tem ligação com a consideração, falsa, de que a Terceira Via foi um desvio neoliberal do verdadeiro socialismo e que a globalização deve ser fortemente combatida. Esta visão sempre existiu na JS, mas não estava presente, com significado, no PS. Hoje está!
Quando os PS’s vários se juntam e entendem o país conseguem ganhar eleições, quando se enlevam em visões mais revolucionárias remete-se à oposição. Os futuros “proprietários” deste partido sabem bem o que os espera. Se o partido quiser fazer um século de vida deve ter bem presente que Portugal tem uma psicologia coletiva muito especial. Não queiram fazer do PS o partido metálica, porque sempre foi o partido do fado.
Bibliografia recomendada:
Declaração de Princípios do Partido Socialista;
Avillez, Maria João, 1996, Soares, ditadura e revolução, Lisboa, Edições Público;
Gomes, Pedro, 2019, Breve história do Partido Socialista, Lisboa, IHC;
Pouchin, Dominique, 1976, Portugal que revolução? Lisboa, Perspetivas e realidades;
Soares, Isabel, 1979, Cem anos de Esperança, Lisboa, Edições Portugal Socialista;
Soares, Mário, 1974, Portugal Amordaçado, Lisboa, Arcádia;
Soares, Mário, 1975, Escritos do Exílio, Lisboa, Bertrand;