Opinião

Isolamento judiciário: a quem interessa abafar a discussão constitucional?

A democracia pluralista e as liberdades fundamentais necessitam de oxigénio. Caso contrário, não tardarão pulsões securitárias e autoritárias que não hesitarão em desvalorizar a autoridade ética e democrática das decisões proferidas pelo Tribunal Constitucional. Que os juízes constitucionais não se isolem. Nem queiram abafar a discussão constitucional

Em 1975, o enorme constitucionalista alemão Peter Häberle publicava “A Sociedade Aberta dos Intérpretes da Constituição”. Ali explicava que “no processo de interpretação constitucional estão potencialmente vinculados todos os órgãos estatais, todas as potências públicas, todos os cidadãos e grupos, não sendo possível estabelecer-se um elenco fechado ou fixado com numerus clausus de intérpretes da Constituição” (p. 13).

Esta abordagem foi deveras revolucionária, pois representou o fim de um modelo assente num autofechamento e num certo secretismo dos juízes constitucionais, que decidiam em círculo fechado e restrito. A discussão constitucional deixou de se fazer apenas nos grémios e nos salões das elites intelectuais e jurídicas, passando a enfrentar a luz do dia, onde as diversas leituras (sociais, culturais, filosóficas e civilizacionais) da Constituição passaram a fazer-se ouvir, em voz alta e clara. Sem o recato próprio de uma Justiça Constitucional distante e habituada à reclusão.

Foi, pois, com espanto – principalmente, por lhe reconhecer uma inegável visão pluralista e aberta ao diálogo – que li na imprensa declarações proferidas pelo atual Presidente do Tribunal Constitucional, a curtos dias de terminar o seu mandato, através das quais lamentou que “os casos mais relevantes pendentes nos tribunais portugueses, incluindo o Tribunal Constitucional, são abundantemente comentados, nos meios de comunicação e nas redes sociais, ainda antes de serem conhecidos”. Mais do que isso, denunciou que tais comentários são feitos “por quem, pouco ou nada conhecendo das questões envolvidas – frequentemente muito delicadas -, nem por isso se abstém de emitir juízos precipitados e mal fundados” e acusou que “Se umas vezes o desconhecimento é compreensível e demanda um esforço mais intenso nos tribunais no sentido de explicar melhor os seus mecanismos decisórios, outras vezes disfarça mal tentativas de pressionar os tribunais no sentido de decidir em certo sentido”.

Estou certo que foi dito com boa intenção. Mas aquelas acusações podem ser mal interpretadas. E até se afiguram contraditórias, já que, não raras vezes, até têm sido fontes próximas do Tribunal Constitucional que vão dando conta de processos que lá se encontram pendentes, através de uma lamentável e crescente fuga de informações. Veja-se como foram fontes interessadas no resultado da votação que divulgaram que os juízes constitucionais pretendiam cooptar António Almeida Costa, que tinha proferido considerações pouco consentâneas com o texto constitucional sobre a (i)legalização da interrupção voluntária da gravidez ou sobre o (na sua perspetiva) “excesso” de liberdade de imprensa. Ou como são fontes internas ao Tribunal que informam jornalistas sobre o teor das discussões internas ou até sobre a data de publicitação de decisões polémicas, como aconteceu no caso da eutanásia em que o Expresso soube, de véspera, a um domingo, que a decisão já estava tomada e iria ser comunicada no dia seguinte. Na verdade, com o passar dos anos, a salutar discrição, que blindava a vida interna do Tribunal Constitucional, protegia as suas discussões internas face ao exterior e favorecia a consensualização de uma fundamentação comum dos acórdãos, tem-se vindo a perder.

Por outro lado, as peripécias relativas à cooptação – primeiro de um juiz, depois de dois e, daqui a dias, de três juízes – diminuíram, em muito, a autoridade externa do Tribunal. Como compreender que um órgão que não revela nenhuma tolerância quanto à interpretação de normas sobre cumprimento de prazos pelos particulares, esteja a demorar mais de 1 (um) ano e 5 (cinco) meses para substituir um juiz que já terminou o mandato em 01 de outubro de 2021?!? Ainda por cima, quando esse atraso se traduziu no benefício, pelos dois juízes envolvidos, de uma norma (quase) caduca que confere um direito a pensão vitalícia a quem exerça funções por mais de 10 (dez) anos (cfr. artigo 23.º-A, n.º 4, da Lei do TC).

Ora, desde o aditamento desta regra, em 1989, foram raríssimos os juízes que utilizaram esta prerrogativa, na medida em que, em regra, regressaram às suas atividades profissionais anteriores. Por outro lado, na sequência da revisão constitucional de 1997, os mandatos dos juízes deixaram de poder ser sucessivamente renovados e ficaram restringidos a um mandato único de 9 (nove) anos (cfr. artigo 222.º, n.º 3, da Constituição). Justamente por isso, era consensual entre os constitucionalistas que a norma que conferia aquele direito a pensão vitalícia tinha caído em desuso. Desse modo se contrariava qualquer pulsão populista que procurasse atingir a honorabilidade e a retidão dos juízes constitucionais. Agora, por sua própria culpa, o Tribunal Constitucional presta-se a insinuações inaceitáveis (e que refuto) sobre as razões dessa demora.

Se é certo que cada juíz/a constitucional deve garantir, para si próprio/a, um espaço de reflexão isento e imparcial, não posso aceitar que se imponha a toda a sociedade civil uma mordaça, impedindo-a de discutir a constitucionalidade das concretas decisões legislativas que vão sendo propostas e adotadas. Como já demonstrou Peter Häberle, a abertura do julgador constitucional à discussão pública livre e pluralista permite que o resultado das suas decisões seja mais facilmente aceite pelos seus destinatários. Com efeito, se não se permitir a participação dos cidadãos nesse processo de aplicação da Constituição à realidade – através do espaço público, através da comunicação social ou das redes sociais –, corremos um sério risco de distanciamento dos mesmos. Pode até gerar-se a sensação de que os cidadãos não ficam politicamente vinculados ao efeito de caso julgado das decisões, o que fragiliza a força normativa da Lei Fundamental.

Ao contrário do desabafo proferido pelo Presidente do Tribunal Constitucional – que, note-se, até pode compreender-se, no plano humano, à luz de algum cansaço relativo ao mediatismo da sua função –, a discussão pública dos grandes temas constitucionais só alarga o leque daqueles que podem participar no desafio interpretativo da Constituição, que nos pertence a tod@s. E não apenas aos seus guardiões. Assim, a discussão pública das grandes questões constitucionais não diminui o Tribunal Constitucional. Antes o engrandece, contribuindo para manter a unidade política e para reforçar o sentimento de pertença dos indivíduos à comunidade.

Em democracia, há sempre soluções.

Nesse sentido, o Tribunal Constitucional devia reforçar a transparência da sua atuação, à semelhança do que têm vindo a fazer outros tribunais congéneres. Veja-se, a título de exemplo, o Tribunal Constitucional alemão que, no passsado dia 3 de março, anunciou uma nova política de abertura e de comunicação, sob o lema “Moderno, Independente e Próximo das Pessoas”.

Para além de melhorar a comunicação do mesmo com o exterior – o que envolve uma cultura pró-ativa de explicação das suas decisões –, tornar-se-ia crucial abrir a discussão para além da mesa arredondada onde se sentam os/as treze juízes do Palácio Ratton. Evidentemente, essa mudança de modelo implicaria uma reforma constitucional que, curiosamente, nenhum/a deputado/a pretendeu abrir, visto que nenhum dos projetos de revisão constitucional propõe alterações quanto a estes aspetos. Em suma, deveria:

  • Criar-se a figura do “amicus curiae” – ou seja, de um 14.º membro do Tribunal que, sem ter direito de voto, tivesse assento e participasse nas reuniões do plenário de juízes, que tanto podia ser exercida pelo/a Provedor/a de Justiça ou por individualidade a eleger pelo Conselho de Estado. Note-se, que apesar de funcionar junto do Tribunal Constitucional, o Ministério Público limita-se a uma função auxiliar do controlo da constitucionalidade, na fase de vista, não intervindo na discussão oral;
  • Permitir que, após pedido de fiscalização de constitucionalidade por uma das entidades, todos os demais órgãos com legitimidade para o efeito (cfr. artigo 281.º, n.º 1, da Constituição) possam apresentar a sua opinião, através da apresentação de pareceres e da junção de documentos. Isso implicaria, por exemplo, que, quando o Presidente da República solicita fiscalização, Provedora da Justiça, Procuradora-Geral da República, um décimo dos Deputados e demais entidades pudessem intervir no processo, expressando a sua posição;
  • Aumentar os poderes do/a Juiz/a Relator/a para solicitar informações oficiais a entidades públicas, para nomear peritos e para ouvir depoimentos de testemunhas;
  • Garantir a transparência da cooptação de juízes, mediante publicação dos candidatos no Diário da República e realização de audições parlamentares aos candidatos.

Por outro lado, o afastamento dos cidadãos do processo de defesa e discussão constitucional deve, também, ser combatido através de uma alteração urgente ao regime de custas processuais no Tribunal Constitucional, que funciona apenas como um instrumento de arrecadação de receitas próprias e que veda, de modo inaceitável, o acesso por parte dos cidadãos que dele precisam. Impõe-se ainda, por via legislativa, a neutralização de uma jurisprudência inacreditavelmente formalista, que funciona como estranguladora do acesso ao Tribunal, cuidando apenas da deteção de falhas formais e, assim, fugindo à tomada de posição substantiva sobre as questões que importa. Impõe-se forçar os juízes constitucionais ao respeito pelo princípio “pro actione”, que pressupõe a prevalência das decisões de mérito (quanto à substância dos assuntos julgados) sobre as decisões sobre requisitos de forma.

Afinal, o Tribunal Constitucional administra a Justiça em nome de tod@s nós. E, por isso, não deve fazê-lo à porta fechada, envolto em segredo.

A democracia pluralista e as liberdades fundamentais necessitam de oxigénio, de ar puro e de ver a luz do dia. Caso contrário, não tardarão pulsões securitárias e autoritárias que não hesitarão em desvalorizar a autoridade ética e democrática das decisões proferidas pelo Tribunal Constitucional. Afinal, só a essas forças autoritárias e populistas interessa abafar a discussão constitucional. Quanto mais circunscrita a uma elite intelectual, académica e judiciária, menos a Constituição terá força para transformar a sociedade em que vivemos.

Que os juízes constitucionais não se isolem.

Nem queiram abafar a discussão constitucional.

Para que, à semelhança do que fez o célebre moleiro que, em 1745, se opôs a que o Imperador da Prússia, Frederico II, lhe confiscasse o seu moínho de vento, para ampliar o Palácio de Verão, se possa continuar a dizer: “Ainda há juízes na Rua de «O Século»”.