Nem o discurso elucidativo do embaixador do Quénia junto das Nações Unidas demoveu uma parte dos países africanos de optarem pela neutralidade na invasão russa da Ucrânia. Um tema pouco ou nada abordado e aprofundado em Portugal nas últimas semanas.
Conforme Kimani enfatizou no Conselho de Segurança das Nações Unidas a 22 de fevereiro, as fronteiras do Quénia e de praticamente todos os países africanos foram traçadas nas distantes metrópoles coloniais da Europa, sem qualquer consideração pelas antigas nações. Foi só através dos apelos a membros da comunidade internacional que muitos receberam o apoio para travar as suas próprias batalhas de autogoverno e independência. Um mundo em que o multilateralismo perde é todo um retrocesso onde as normas voltam a ser desconsideradas e o poder da força bélica volta a fazer o que quer. Perante isso, nada deveria dizer mais a qualquer país africano do que a forma e os pergaminhos da invasão do regime de Putin à Ucrânia.
Então porque é que a neutralidade que, perante uma injustiça maior não é mais do que a escolha pelo lado do opressor, conforme referia o sul-africano, Desmond Tutu, foi a opção de países como Angola e Moçambique? As explicações para esta resposta podem ser variadas, complexas, mas demasiado incongruentes e acarretam mais um desafio na relação entre o Ocidente e África na nova ordem mundial que sairá deste conflito.
Os EUA e a União Europeia proporcionam uma vantagem económica indiscutível a África. Aliás, basta conhecer todo o esforço meritório que muitos países africanos fazem nos mais variados fóruns económicos na União Europeia para percebê-lo. Olhos nos olhos como deve ser, com investimentos em várias áreas e longe dos tempos da política de caridade nesta área que tantos líderes apontavam e bem como contraproducente para o continente na década de 90 e no início do milénio. Os números também não enganam: as trocas comerciais entre a Rússia e os países da África Subsaariana representaram cerca de 7 biliões de dólares em 2021 e as da União Europeia e EUA ascenderam a 45 biliões de dólares. (Quase seis vezes mais!) Ou seja, o que está em causa ultrapassa largamente quaisquer cálculos económicos.
A ligação da antiga União Soviética e o seu papel em momentos-chave não é de todo para descurar a nível histórico, mas diz muito mais a alguns regimes no poder, do que às populações civis propriamente ditas. Aqui, a identificação ao Ocidente, nomeadamente a países como Portugal, França, Suécia, Espanha e Inglaterra é constante. Não é por acaso que o afrobarometer e outras entidades especializadas indicam que os africanos apoiam de forma esmagadora os princípios democráticos, mesmo quando os seus líderes estão relutantes em fornecê-los. Como não o é o facto de terem sido algumas das democracias africanas, mesmo que imperfeitas, as que melhores instituições nacionais e índices políticos têm e que por sua vez, mais energicamente condenaram a invasão.
O recente estudo e levantamento da fundação Tony Blair é taxativo quanto ao real peso da ligação à antiga União Soviética dos países que se abstiveram. Caracterizam-no como um fator menor que representa uma espécie de nostalgia extraviada de uma minoria.
Ao contrário, apontam o armamento que se vem acentuando como o fator decisivo. Faz sentido: Moscovo é o principal fornecedor de armas para África e desde 2015 que assinou acordos militares com mais de vinte países do continente. Dessas nações, quase todas são as que se abstiveram no Conselho de Segurança das Nações Unidas. Não há coincidências aqui. Os conflitos no continente africano constituem um mercado propício para uma elite especifica do regime de Putin que tira proveito do contexto, abastecendo milícias e grupos extremistas. Ocupam lugares de preponderância, sobretudo quando esses países têm dificuldades de todas as ordens nos meios disponibilizados para combater. Foi assim na região de Cabo Delgado em Moçambique, mas também na África Central, onde houve uma presença acentuada de mercenários russos.
É importante que a UE e em especial Portugal percecionem que as posições de alguns países africanos na geopolítica e na nova ordem mundial deixaram de representar qualquer garantia para o Ocidente. Por mais ínvios que esses caminhos possam parecer. Também não se deve ser temerário na cedência a uma aparente hipocrisia e oportunismo de alguns líderes africanos que utilizam sistematicamente a suposta interferência Ocidental na política interna dos países como uma cortina de fumo para se perpetuarem e às suas cúpulas no poder. São as alianças com organizações locais, regionais ou transacionais da sociedade civil e entidades pró-democracia que devem prevalecer e existir em paralelo a nível institucional nesses países.
Seja como for, o business as usual por parte da União Europeia com os regimes que votaram de forma neutra na Assembleia Geral das Nações Unidas deixou de ser um dado adquirido. O desconforto e a surpresa em relação à posição de um ou outro país africano que se mantém irredutível é real. Dificilmente, a nova ordem mundial que se avizinha e a acentuada divisão entre democracias liberais e autocracias sugere que isso seja ignorado e não haja reflexos.