Este é mais um orçamento com significado político, prova de vida de um governo minoritário. A chegada ao fim de uma legislatura sinaliza a maturidade da democracia e uma boa gestão dos dinheiros públicos. Mas só por si não chega. A economia portuguesa partilha desafios com as restantes economias europeias e difíceis de conciliar: premência de crescimento económico na era digital; reconversão da economia para redução das emissões de carbono; falta de habitação a preços acessíveis à classe média nas grandes cidades; impostos regressivos, mais altos para a classe média, menos para empresas e cidadãos com elevada capacidade contributiva, dada a mobilidade destes últimos. O elevado valor dos imóveis e a tributação do carbono penalizam os contribuintes de menor rendimento e é difícil aos governos prosseguirem objetivos de justiça fiscal.
Além dos desafios, há constrangimentos europeus comuns, bem conhecidos: o orçamento de Estado para 2022 está sujeito a limites quanto ao défice e a limites de endividamento. A meta do défice português de 3,2% do PIB para 2022 e o crescimento da economia portuguesa superior a esse montante dão uma folga no orçamento de 600 milhões. Esta permite negociação com a oposição de esquerda e as suas bandeiras políticas. Mas trata-se de uma folga aparente, dada a elevada dívida pública existente: 128% do PIB, segundo as previsões do Governo para este ano (face a 135,2% no ano anterior). Tem sido recomendada prudência, uma vez que a descida da dívida para perto de 100% em 2030 depende do crescimento da economia e da taxa de juro.
A pouca margem orçamental e a negociação anual do orçamento de Estado com os partidos à esquerda do governo não têm sido benéficas para a reconversão urgente da economia e o crescimento sustentado: têm contribuído para a ausência de metas e de ambição. O Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) deveria alterar o estado das coisas, mas é duvidoso que assim seja.
Coerência com os objetivos do PRR: transição para a economia digital e reconversão aos objetivos climáticos
Desde logo, o orçamento de Estado para 2022 deveria ser coerente com os objetivos de resiliência da economia e de aspetos de retoma tratados no PRR. É o primeiro dos orçamentos para uma nova fase da economia portuguesa, baseada na oportunidade criada pelo PRR (o qual tem um período de execução até 2026).
O PRR português é financiado por recursos totais de 16,6 mil milhões de €, distribuídos por cerca de 14 mil milhões de € de subvenções e 2,7 mil milhões de € de empréstimos. Segundo a apresentação do sítio da internet do PRR, o perfil de desembolsos permitirá a liquidez necessária para que o PRR funcione como instrumento efetivo de resposta à crise.
Segundo o Regulamento Europeu do Mecanismo de Recuperação e Resiliência, pelo menos 37% do valor global dos Planos deverá estar afeto a reformas e investimentos que contribuam para o combate às alterações climáticas, e pelo menos 20% será afeto a investimentos e reformas no âmbito da transição digital.
Mas na combinação apresentada pelo PRR português, as transições relativas ao clima e ao digital representam uma absorção de financiamentos de 1/3 do total do programa, enquanto a dimensão resiliência, que engloba a vertente das vulnerabilidades sociais, a resiliência económica e a resiliência territorial absorvem 2/3 dos recursos do PRR. Esta desproporção fica muito aquém das metas reformistas do PRR europeu, mostra o atraso português em relação à Europa e a pouca ambição para as transições climática e digital. Assim, na rubrica resiliência cabem a capitalização e inovação empresarial (sem referência ao digital e ao combate às alterações climáticas), habitação, saúde, qualificações e competência, infraestruturas, floresta, gestão hídrica (11,125 milhões de €).
Na transição climática estão compreendidos a mobilidade sustentável, a descarbonização da indústria, a eficiência energética dos edifícios, o hidrogénio e renováveis, o mar, a bioeconomia sustentável (3059 milhões de €); e na transição digital os montantes são distribuídos por empresas, administração pública mais eficiente, escola digital, qualidade das finanças públicas, justiça económica e ambiente de negócios (2460 milhões de €). Em ambos os casos, os montantes aplicados à reconversão da economia são escassos.
Estímulos à inovação e investigação
Seja como for, tal como o PRR, este e os próximos orçamentos devem responder aos desafios da transição para uma sociedade mais ecológica e digital. O aumento dos impostos sobre o carbono e os combustíveis não é tarefa fácil, pode colocar em risco a competitividade de alguns setores da economia portuguesa, de que é exemplo a construção civil.
O aumento do preço dos combustíveis na semana passada mostrou como toda a economia está em risco e pode paralisar. A transição económica não se pode limitar a tributos com sabor a penalização, são necessários estímulos à transição para a nova economia. Neste contexto, são recomendáveis despesas orçamentais estimulando a inovação e o investimento do capital nacional e estrangeiro na investigação. Essas despesas devem ser consagradas como subsídios à investigação, tal como desenhados no recente plano Biden, e não através da descida de impostos.
Na verdade, a anunciada tributação mais baixa dos royalties para atrair investigação e inovação na transição climática e digital não é eficaz se as funções, ativos e riscos não estiverem ligados ao território português. A concorrência internacional é grande e são de antecipar litígios com os parceiros europeus e norte-americano. Estes podem corrigir a tributação a seu favor (preços de transferência) e podem aplicar uma tributação compensatória (sociedades estrangeiras controladas), se não forem distribuídos os dividendos do investimento em Portugal. Por exemplo, se se tratar de investimento norte-americano, os EUA podem aplicar uma taxa compensatória (GILTI) ou impedir a dedução de gastos relacionados com o investimento em Portugal (BEAT). Além disso, as medidas de apoio às empresas no domínio da capitalização e inovação empresarial devem ser coerentes com os objetivos de transição climática e digital e por isso a atribuição de benefícios fiscais deve ser revista.
Em geral, a discussão em torno do orçamento parece centrar-se nas famílias. No entanto, estas precisam da reconversão da economia e da sua competitividade. Um PRR pouco ambicioso conjugado com um orçamento que não estimula a transição climática e digital não é só mais uma oportunidade perdida: é uma receita para mais atraso.