Opinião

Nem tudo o que parece é

No dia 3 de Agosto, vários meios, cobrindo um largo espectro político exibiam um mesmo título: “Cinco maiores bancos lucram mais de 708 milhões no primeiro semestre”. Um número assim “atirado para o ar”, sem enquadramento ou referência comparativa, e num país onde o rendimento disponível médio das famílias será da ordem dos 35 mil euros anuais, não pode deixar de conter uma insinuação subliminar, típica de uma cultura que convive mal com a geração de riqueza, ao mesmo tempo que se queixa do empobrecimento do país.

Se quisesse ser mais esclarecedora, a notícia poderia acrescentar que os mesmos bancos tinham, no final de 2020, capitais próprios na ordem dos 26.6 mil milhões de euros e que, portanto, aqueles lucros correspondiam, grosso modo, a uma taxa de rentabilidade anualizada de pouco mais de 5%; que o custo do capital, com que os investidores comparam para decidir os investimentos, não será inferior a 9%; e que é uma rentabilidade inferior à de outros setores, menos atreitos à curiosidade mediática. Daí se perceberia que a rentabilidade implícita naqueles tantos milhões não é de molde a atrair capital; e que, sem atrair capital, a expansão da atividade bancária – i.e. a capacidade de financiar a desejada expansão da economia – fica seriamente condicionada. E que, portanto, a banca portuguesa tem um problema de rentabilidade que, se não for resolvido, arrisca a sua autonomia (uma baixa rentabilidade desvaloriza o capital investido, ‘embaratecendo’ a sua potencial aquisição).

O modelo capitalista, baseado no predomínio da alocação de recursos produtivos pelo mercado, provou historicamente ser o que melhor favorece a criação de riqueza e a generalização de bem-estar social. Foi a incapacidade de o modelo económico soviético alocar eficientemente os recursos produtivos e satisfazer as expectativas de bem-estar das populações – e não qualquer incapacidade ou desvantagem militar – que levou ao colapso do respetivo regime político e à derrota na Guerra Fria. E foi a inteligência de Deng Xiaoping, que compreendendo que “sem expandir as forças produtivas, tornando o país próspero e poderoso, a revolução não passa de conversa fiada” e que a experiência tinha mostrado que uma economia planificada não consegue essa expansão, fez adotar, no seio do regime comunista, mecanismos de mercado e incentivos como a propriedade e a iniciativa privadas, graças ao que a China teve o conhecido sucesso.

Pela lógica capitalista, o capital é alocado pelo mercado às empresas que, conseguindo mais eficientemente organizar talento e tecnologia, lhe proporcionam melhor remuneração. As empresas que não consigam as condições para atrair capital, acabam, mais cedo ou mais tarde, por sucumbir ou ser absorvidas por outras mais eficazes. E é este o grande desafio da banca portuguesa, depois de ter superado os danos da crise financeira.

Superar o desafio depende da sua capacidade de gestão, para se adaptar rápida e eficazmente às mudanças do contexto de negócio, mas também de que lhe sejam retirados do caminho obstáculos regulatórios desnecessários ou desfavoravelmente desniveladores da sua competitividade no espaço europeu. No que de si depende, está a habilidade em responder às mudanças, trazidas pelas tecnologias digitais e aceleradas pela reação aos constrangimentos da pandemia, no processamento de informação, nos processos de trabalho e nos relacionamentos comerciais. Sobretudo quando empresas de outros sectores, com atividade assente na exploração das economias de rede das grandes plataformas digitais, e com um enquadramento regulatório muito mais favorável – como são as Big Techs (Google, Apple, Facebook, Amazon, etc.) – , resolveram disputar todo o ecossistema do negócio bancário.

As referidas mudanças impõem uma profunda alteração na combinação de talento e tecnologia necessários ao desenvolvimento do negócio da banca. Do que resulta, por um lado, a inevitável obsolescência de algumas funções “tradicionais” e das formas “tradicionais” de relacionamento com os clientes (com extensas redes de agências físicas) e, por outro, a revalorização das funções mais ligadas às novas tecnologias, e das interações digitais assentes em plataformas de internet e aplicações móveis. Um banco que atrase a sua adaptação incorre em custos operacionais infrutíferos, com perda de competitividade e de negócio.

Mas a superação do desafio depende também da eliminação de adversidades competitivas impostas pelos reguladores. Há adversidades que afetam todo o sector bancário europeu e que o desfavorecem face aos concorrentes de base tecnológica, sujeitos a muito menos obrigações. De facto, parece que os reguladores de uma atividade económica essencial abdicaram de um dos mais elementares princípios do cálculo económico – a análise custo/benefício (social) das normas que impõem. Mas há outras adversidades que são especificamente nacionais e que desnivelam desfavoravelmente a competitividade dos bancos que operam em Portugal face aos baseados noutras localizações, causando sério dano económico ao país e pondo em causa a subsistência de um sistema bancário nacional.

Desde logo, o peso fiscal e parafiscal resultante das contribuições para o Fundo de Resolução Nacional, as Contribuições (especiais) sobre o Sector Bancário (incluindo o adicional de solidariedade). (Note-se, a propósito, que o impacto das resoluções bancárias nas finanças públicas – défice e dívida – já foi concretizado, pelo que estas contribuições especiais são fiscalidade pura sobre o sector!). O total destas contribuições pagas pelos mesmos cinco bancos em 2020 montaram a mais de 206 milhões de euros (quase um terço dos lucros da notícia), constituindo uma poderosa punção, especificamente nacional, sobre a rentabilidade dos bancos sediados em Portugal, e, portanto, um incentivo à sua “desediação” e à “sucursalização” do sector (ou à pura e simples deslocalização). Outros desniveladores contribuem para corroer a competitividade do sector nacional, como a proibição de cobrar algumas receitas, mas o espaço disponível não permite estender a lista.

Voltando ao título noticioso com que o artigo foi iniciado, e tendo em conta, como explicado, a insuficiente rentabilidade do sector, será caso para dizer, como diz o povo, que as aparências iludem.