Opinião

A escolha entre sofrer e morrer só pode ser viver

Francisco Rodrigues dos Santos, Presidente do CDS-PP, assina um artigo de opinião exclusivo para o Expresso sobre a eutanásia

O Parlamento prepara-se para votar a legalização da morte a pedido. Os partidos subscritores dos projectos em discussão pretendem consagrar o direito de o Estado pôr termo à vida de um ser humano, ainda que a pedido do próprio. É disto que se trata e é tendo bem presente o precedente que esta possibilidade abre, que a questão da legalização da eutanásia deve ser avaliada. E deve ser ponderada no plano jurídico, no plano ético e no plano político.

No plano jurídico, o nosso ordenamento, que assenta no primado da dignidade da pessoa, confere à vida humana o estatuto de bem inviolável, impondo ao Estado e à comunidade o imperioso dever de a respeitar e preservar. É esse princípio que determina ao Estado a organização de um serviço nacional de saúde gratuito e universal; que garante um sistema de segurança organizado e regulado; que se estrutura para defender a paz e a ordem. No nosso sistema jurídico, é a pessoa, e o seu direito a viver uma vida plena e condigna, que limita e baliza os poderes do Estado e as liberdades da pessoa. Alguns dirão que é legítimo cada pessoa escolher como pôr termo à sua vida. Todavia, a eutanásia não é o mesmo que o suicídio, cuja concretização não envolve terceiros. O suicídio praticado por outro já não é suicídio, é homicídio, e é precisamente a intervenção do terceiro que, no caso, faz toda a diferença, na medida em que lhe atribui um poder que, por definição, não é delegável.

Muito se tem debatido a questão da eutanásia do ponto de vista da liberdade individual e do direito a morrer com dignidade. Ao contrário do que se julga, essa liberdade é já, no plano legal, amplamente reconhecida. A lei garante a todos o direito de recusar tratamentos, de rejeitar o prolongamento artificial da vida, de ser submetido a terapêuticas que agravem o seu sofrimento. O testamento vital, o consentimento informado, a declaração prévia de vontade são opções pouco divulgadas que, se bem aplicadas e articuladas com uma rede de cuidados paliativos de cobertura nacional, resolveriam satisfatoriamente as principais questões do sofrimento no fim da vida. Sucede, no entanto, que tais cuidados são disponibilizados apenas a uma ínfima parte da população. Infelizmente, a maior parte dos doentes terminais não acede aos cuidados de saúde de que necessita e não tem, muitas vezes, qualquer espécie de apoio familiar ou social. Sofre em abandono e em solidão, vivendo numa desumanidade com que não nos podemos conformar, optando pela solução hipócrita de matar o problema.

Neste quadro, como se afere a liberdade de escolha de quem vive sem escolha? Que liberdade tem aquele que vive em sofrimento, com dor, sozinho e sem cuidados médicos? Como pode alguém doente e em padecimento extremo formular livremente uma vontade? Não será a vontade de morrer o grau último do desespero, a expressão derradeira da desesperança, o grito radical de quem, por querer viver, não quer sofrer? O que se espera de uma comunidade organizada, de um Estado humanista, é que cuide, que ampare, que trate, que conforte. Não é que mate, por absoluta incapacidade de proteger a vida.

No plano ético, só por falência moral e relativismo absoluto se pode abrir a porta à possibilidade de o Estado pôr fim à vida de alguém. Os mecanismos de controlo da liberdade em que a decisão é tomada, do esclarecimento efectivo das alternativas, da actualidade da vontade, são forçosamente falíveis, mas o desfecho do procedimento é forçosamente irreversível. É por isso impossível negar que a legalização da eutanásia representa um retrocesso civilizacional inaceitável, que ofende todas as conquistas que a tradição ocidental alcançou em matéria de direitos humanos e que põe em causa a importância da dignidade da pessoa e da inviolabilidade da sua vida. E este recuo é sobretudo assustador por ser o próprio Estado a decidir quais são as vidas que devem ser preservadas, quais aquelas de que não vale a pena cuidar, apreciando e decidindo o sofrimento do outro, num processo burocrático e complexo. Se admitirmos, nem que seja por uma única vez, que é ao Estado que compete ajuizar que vidas têm ou não dignidade para serem mantidas, perderemos a legitimidade para travar qualquer abuso, para reclamar de qualquer excesso.

De resto, os exemplos que nos chegam dos países que liberalizaram a eutanásia são aterradores: inicialmente focados em oferecer soluções sem dor para doentes terminais sem qualquer esperança terapêutica e em sofrimento insuportável, os quadros jurídicos actuais acabaram a permitir a morte de crianças, de pessoas que sofrem de depressão, que estão infelizes ou descontentes, descendo vertiginosamente a rampa deslizante que desqualifica a vida humana, a transforma em mercadoria descartável e reduz a sociedade a agrupamento amoral, sem laços e sem afectos, onde só os fortes e os saudáveis têm lugar. Também a posição institucional dos profissionais de saúde, sejam as ordens profissionais ou os grupos económicos do sistema privado – radicalmente contra a liberalização da eutanásia – são um dado do problema que não pode ser ignorado, precisamente por vir de quem melhor conhece a realidade dos doentes terminais, de quem com eles tem mais proximidade e de quem deles cuida diariamente. Que sentido faria que a solução oferecida pela medicina para aliviar o desespero fosse o paradoxo de destruir activamente o valor supremo que visa preservar? Endossar-lhe esse poder é contra a sua natureza milenar. Que confiança merecerá um médico a quem é conferida a permissão de apresentar a morte ao paciente como prescrição? Um quadro de leis que permita matar imprime um risco incontrolável na sociedade e arruína a relação médico-doente. Dissemina a suspeita no sistema de saúde. É anti-social, por não colocar a salvo os mais débeis, os pobres, os dependentes, os idosos, da hipótese de uma morte para qual, eventualmente, poderão ser conduzidos.

No plano político, a precipitação da decisão parlamentar sobre o direito de exigir a morte, não pode deixar de causar perplexidades várias. Por um lado, é evidente a desinformação e a confusão que esta matéria suscita na sociedade portuguesa. O escasso debate que os promotores desta iniciativa foram viabilizando, mais por imposição das forças vivas da comunidade do que por sua vontade, é ainda manifestamente insuficiente para que a maioria dos portugueses saiba exactamente o que está em causa, e para que compreendam que a sua escolha não tem por que ser entre morrer ou sofrer. Mesmo tendo levado à Assembleia da República a votação desta questão há menos de dois anos, os partidos que a defendem recusaram maioritariamente debatê-las em campanha eleitoral, inseri-las nos seus programas ou auscultar, com seriedade, a vontade dos eleitores. Forçando a sua votação no novo quadro parlamentar, menos de seis meses após as eleições, os partidos proponentes recusaram um debate alargado e esclarecedor, contrariando a enorme maioria dos pareceres das instituições consultadas. Admitir, neste cenário, que a consciência dos deputados, que exercerão o seu voto sem disciplina partidária, é representativa da vontade da maioria dos portugueses é, no mínimo, uma irresponsabilidade. É também por isso que o CDS não deixará de viabilizar o caminho do referendo, se essa for a forma de alargar o debate, de promover o esclarecimento e de devolver a palavra aos eleitores. É a sua consciência, e não a dos deputados (em que ninguém votou), que vale a pena ouvir quando se pretende alterar radicalmente o estatuto de um direito fundamental inviolável.

Não há forma de conciliar, no plano dos princípios, um Estado que cuida, que ampara e que protege com um Estado que promove a morte. O Estado que liberaliza a eutanásia é um Estado que, ao invés de promover políticas efectivas de combate ao abandono e à exclusão, empurra os mais frágeis para a morte. Um Estado que, em lugar de garantir a todos o conforto e a dignidade na doença, lhes oferece uma injecção letal. Um Estado que desiste das pessoas, em vez de cuidar delas, é um Estado falido. É por isso que o CDS se oporá firmemente à liberalização da eutanásia e se empenhará em garantir a todos os portugueses os cuidados médicos de excelência que assegurem o conforto e a redução do sofrimento que a sua dignidade merece. Contarão com o empenho incondicional do CDS para esse combate.