Ao longo do rio Dniepre, o impacto poderá ser sentido por gerações: aldeias e cidades podem não voltar a ser habitáveis durante anos e atividades de subsistência, nas margens férteis do curso de água, podem ser irrecuperáveis. O colapso da barragem de Nova Kakhovka, na Ucrânia, está a ser descrito pelas autoridades como um “ecocídio”, já que também fauna e flora demorarão décadas a recuperar. Ou, como caracterizou Volodymyr Zelensky, poderá tratar-se do "maior desastre ambiental causado pelo homem na Europa em décadas”.
A infraestrutura crítica, na região de Kherson – agora no controlo das forças russas – colapsou na terça-feira, inundando uma faixa da linha da frente da guerra. Até cerca de cem localidades foram afetadas por inundações e pelo menos 17 mil pessoas tiveram de ser retiradas. Cerca de 42 mil pessoas correm o risco imediato de inundação a jusante da barragem.
O evento em Nova Kakhovka, uma das barragens com maior capacidade no mundo (18 mil milhões de metros cúbicos), pode mesmo chegar a afetar países vizinhos, e as torrentes arrastam dezenas de milhares de minas, à medida que atravessam a linha da frente da guerra. As inundações podem, por isso, causar explosões em terreno onde se encontrem civis, a muitos quilómetros de distância, e até muitos anos depois, aponta o jornal “The Guardian”.
Com 10 mil hectares inundados na margem direita, dão-se cheias, a jusante, fenómeno que contrasta com a escassez de água a montante da barragem. Em poucos dias, os níveis do reservatório estarão tão baixos que as bombas de água da central nuclear de Zaporíjia (a 200 km) não poderão ser utilizadas para arrefecer os reatores. Para isso, os responsáveis da central terão de contar com uma piscina de arrefecimento, destinada a emergências.
Por causa da escassez de água, também a produção de alimentos, como trigo, milho, óleo de girassol e soja, será afetada, com efeitos que poderão ser sentidos em todo o mundo. A Crimeia, que tinha de contar com um canal que fornecia água a partir da barragem de Nova Kakhovka, poderá experimentar uma crise hídrica no próximo ano. Segundo o Ministério da Agricultura e da Alimentação da Ucrânia, os terrenos agrícolas do sul poderão “transformar-se em desertos” no próximo ano. O ministério antecipa que as consequências serão globais, já que foi afetado o maior celeiro da Europa: “O ato terrorista na central hidroelétrica atingiu 94% dos sistemas de irrigação na região de Kherson, 74% em Zaporíjia e 30% em Dnipropetrovsk. Tal destruição significará que os campos no sul da Ucrânia podem transformar-se em desertos já no próximo ano.”
O Ministério da Agricultura e da Alimentação da Ucrânia prevê um cenário devastador para a pesca, com a morte massiva de peixes jovens e adultos. Como a estação de desova terminou recentemente, os ovos de peixe colocados nas margens do reservatório poderão secar. “Outro problema será a entrada e morte de peixes de água doce e outros recursos biológicos nas águas salgadas do Mar Negro. Por sua vez, a fauna do Mar Negro também pode morrer com o influxo maciço de água doce."
Kiev culpa as forças russas pela explosão da barragem, justificando que se trata de uma tentativa para retardar a tão esperada contraofensiva ucraniana. A versão da Ucrânia é de que a barragem explodiu depois de forças russas detonarem minas numa sala de turbinas na margem leste do Dniepre. Por outro lado, Moscovo responsabiliza Kiev, dizendo que a intenção foi sabotar a barragem, de forma a privar a Crimeia - controlada pelas forças russas, desde 2014 - da água que recebe do reservatório. Os “aliados” da Ucrânia pediram a abertura de investigações, para apurar quem são os responsáveis. A NBC News conversou com altos funcionários norte-americanos que admitiram que as secretas dos EUA estão inclinadas para a teoria da responsabilidade russa. Também os líderes da UE e o chanceler alemão, Olaf Scholz, culpa Moscovo. O secretário-geral da ONU, António Guterres, alinha com essa hipótese, e acrescenta: “Uma coisa é clara. Esta é outra consequência devastadora da invasão da Ucrânia."
As imagens de satélite obtidas pela Maxar revelam casas e prédios submersos, restando apenas os contornos dos telhados, e a água a ocupar parques, terrenos e infraestruturas. Martin Griffiths, alto responsável da ONU para a ajuda humanitária, admite que “a magnitude da catástrofe só será compreendida nos próximos dias”.
A evacuação de Kherson prolonga-se pelo segundo dia, apesar dos bombardeamentos recorrentes - autoridades ucranianas contabilizam pelo menos 70 - na margem oriental, controlada por Moscovo. Grupos humanitários dizem ter sido atacados, e o líder da administração regional, Oleksandr Prokudin, adiantou que uma pessoa morreu e outra ficou ferida no seguimento de um bombardeamento. Milhares de civis deverão ainda perder o acesso à água potável.
De acordo com o Presidente da Ucrânia, “pelo menos cem mil pessoas viviam nessas áreas antes da invasão russa” e “pelo menos dezenas de milhares” ainda se encontram na região. Zelensky denuncia ainda que, quando os serviços de emergência da Ucrânia tentavam resgatar pessoas, as autoridades russas nada faziam para ajudar.
Pelo menos sete pessoas encontram-se desaparecidas e cem estão retidas, a precisar de serem retiradas, adianta a agência de notícias russa TASS, citando o autarca de Nova Khakovka nomeado por Moscovo, Vladimir Leontiev.