Na gloriosa vitória do capitalismo sobre o comunismo, há um elefante sempre esquecido na sala: não fez assim tanta diferença para os russos. A maioria não conheceu a prosperidade, a liberdade e a democracia. É curioso que nunca nos perguntemos porquê. E, sobretudo, nunca se tenham tirado ilações sobre o facto do capitalismo (que se mantém há três décadas na fase de “acumulação primitiva de capital”) não ter, como tantas vezes não tem, levado à democracia.
O programa de privatizações da década de 1990 e as reformas económicas que favoreceram níveis endémicos de corrupção, conduziram a Rússia ao default da sua dívida soberana em 1998. A crise económica e social que se seguiu; o desafio de várias regiões da Rússia ao poder federal do estado; e a adesão da República Checa, Hungria e Polónia à NATO, ficando claro que a mudança de regime era percecionada pelo ocidente como uma derrota dos russos que levaria ao seu confinamento e não como uma vitória que lhe daria um lugar relevante no sistema político-militar global, criaram o ambiente ideal para o discurso nacionalista. A Rússia pós-soviética estava no seu ponto mais fraco e a nostalgia pela estabilidade soviética no auge.
É este o contexto da ascensão de um ex-coronel do KGB totalmente desconhecido do grande público a primeiro-ministro do presidente Ieltsin. É nomeado em Agosto de 1999 e logo aí anuncia, com sondagens na casa dos 4%, que será candidato às próximas eleições presidenciais. A segurança interna e a coesão da Rússia, matando as pulsões independentistas de várias regiões, eram as suas prioridades.
Menos de um mês depois de chegar ao poder, atentados em zonas residenciais de Moscovo e mais duas cidades russas mataram mais de 300 pessoas e feriram 1700. Putin foi rápido a responsabilizar os terroristas chechenos – cujas forças tinham lançado uma ofensiva conta o Daguestão, também com uma população de maioria muçulmana – e invadiu a região separatista. O que se seguiu foi um ataque indiscriminado à população civil e a alvos militares, com o cerco da capital Grozni e cidades reduzidas a escombros. Grozni é tomada apenas em fevereiro de 2000, quando já nada restava. Foi considerada pela ONU a cidade mais destruída do mundo.
A “operação antiterrorista”, como lhe chamou a Rússia, demorou nove meses, mas a resistência chechena só acaba definitivamente em 2009, altura em que as forças russas desmobilizam da Chechénia. Vitorioso, num país marcado pela crise economia e sedento de recuperar a glória do seu passado imperial, Putin tornou-se numa figura reconhecida e, seis meses depois do início da operação, ganhou as presidenciais com 53%.
A coincidência temporal das bombas com a carreira política do ex-KGB sempre levantou dúvidas, reforçadas quando, em setembro de 1999, dois suspeitos foram detidos ao tentar detonar um engenho explosivo numa zona residencial da cidade de Ryazan, após a denúncia de um morador, tendo sido apanhados num parque de estacionamento com vários quilos de explosivos. Putin foi rápido a elogiar a rapidez da intervenção das forças policiais, que tinham evitado um novo massacre. No dia seguinte, numa reviravolta surpreendente, os suspeitos foram libertados. Eram oficiais do Serviço Federal de Segurança (FSB, sucessor do KFB) e a resposta oficial foi que, afinal, era açúcar e não explosivos. Não passaria de um teste para melhor conhecer as tácitas terroristas e verificar a prontidão da resposta policial, alegou-se.
A 1 de Setembro de 2004, 32 terroristas fizeram mais de mil reféns numa escola em Beslan, na Ossétia do Norte. A crise terminou dois dias depois com um ataque das forças especiais russas. O resultado foi um massacre: 326 mortos, incluindo 159 crianças, e mais de 500 feridos. Este ataque surge depois de vários atentados terroristas, como o que aconteceu no centro de Moscovo, que originou dez mortos, e dois aviões que explodiram a meio dos voos. Todos foram reivindicados pelo terrorista checheno Shamil Basayev. Mas Beslan, com a morte massiva de crianças, mudou a o sentimento da população como nenhum outro. Putin foi rápido a responder e aproveitou para centralizar ainda mais poderes no presidente, como a nomeação dos governadores regionais, que deixaram de ser eleitos.
Onze anos depois de Beslan e 15 depois da Chechénia, em 2015, Putin responde a um pedido de ajuda do presidente Bashar Assad, que estava quase a perder o controlo da Síria. É a primeira intervenção militar russa fora do espaço da antiga URSS desde a queda do regime soviético. A violência da ofensiva russa, atacando indiscriminadamente hospitais, cidades e bairros residenciais, virou o sentido da guerra a favor de Assad, que ainda hoje se mantém no poder. Não foi o ocidente ou Assad que esmagaram os islamistas na Síria. Foi a Rússia.
A intervenção na Síria permitiu a Putin testar novas táticas e equipamentos militares, como armas de precisão de longo alcance, campanhas de bombardeamento aéreo de larga escala e utilização de forças paramilitares (como nas regiões separatistas ucranianas). A outra frente testada foi a cibernética, com a Rússia a montar uma poderosa campanha de desinformação para escamotear a utilização de armas químicas pelo regime de Assad, insinuando que eram montagens e fake news (uma frente que, por não reconhecer a existência de guerra, perdeu em toda a linha, na guerra da Ucrânia).
Culminando vários meses de bombardeamento, e depois de uma tentativa de cessar fogo que foi unilateralmente quebrado por Assad e pela Rússia, as forças russas bombardearam incessantemente Alepo, entre setembro e outubro de 2016, com o recurso a bombas de fragmentação, de acordo com as principais organizações não governamentais. Os relatos de sobreviventes contam como essas bombas destruíam edifícios inteiros até aos alicerces. Alepo, tal como Grozni na Chechénia, foi arrasada. O mesmo tipo de bombardeamento, desta vez pela artilharia pesada, estão a ser usado em Kharkiv, Izyum e Mariupol, com os mesmos efeitos de horror. Até o ataque a hospitais se repete
Não sei se a boa consciência ocidental está preparada para ver Grozni e Alepo em Kie. Sei que quando o fez na Chechénia e na Síria, com tantos anos de diferença, mas a mesma indiferença de tantos, só alguns dos que agora, curiosamente, são colados a Putin se foram levantando e denunciando. Era contra muçulmanos, islamistas e terroristas, o lado de lá das nossas guerras de então. Sei que o discurso da guerra perpétua contra os inimigos do “nosso modo de vida” é um pronto-a-vestir que também serviu a Putin. E a limpeza com que tratou deles deu muito jeito a quase todos. Putin, esse, sempre foi o mesmo. Se é louco, já o era.