Espanha

Reunião não foi oficial, mas governo espanhol já dialoga em público com líder independentista catalão

A vice-primeira-ministra Yolanda Díaz foi a Bruxelas conversar com o dirigente independentista catalão autoexilado e fugido à Justiça Carles Puigdemont. Os votos do seu partido são cruciais para a recondução do socialista Pedro Sánchez como primeiro-ministro

YVES HERMAN

Yolanda Díaz roubou uma parte importante do protagonismo político a Carles Puigdemont, antigo presidente do governo autónomo da Catalunha, com quem se reuniu esta segunda-feira na capital da Bélgica. Puigdemont, que encabeça o partido independentista Juntos pela Catalunha (JxC) embora não ostente cargo oficial, prometeu anunciar terça-feira, durante um ato académico, a sua lista de condições para o JxC dar apoio parlamentar a uma eventual investidura do socialista Pedro Sánchez como primeiro-ministro.

Díaz adiantou-se e atraiu atenção mediática ao ir ao seu encontro na sede do Parlamento Europeu, para “conversar sobre o momento político atual”. É que Puigdemont é eurodeputado desde 2019.

O Governo de Sánchez, em gestão, e o seu Partido Socialista Operário Espanhol (PSOE, centro-esquerda) demarcam-se da iniciativa de Díaz, que chefia a frente de esquerda radical Somar, frisando que esta não foi a Bruxelas em missão oficial. A governante rompeu, em todo o caso, o isolamento do antigo presidente catalão, reconhecendo-lhe qualidade representativa e aceitando-o como interlocutor, ainda que oficioso.

Após a reunião, que consideraram “frutífera”, os partidos de Díaz e de Puigdemont emitiram um comunicado conjunto no qual prometem “explorar todas as soluções democráticas para desbloquear o conflito político”. A governante afirmou a jornalistas em Bruxelas que haverá mais encontros e que este correu bem”.

É inevitável detetar a importância política do gesto de Díaz. É vice-primeira-ministra e o Somar, que aglutina um heterogéneo grupo de partidos políticos à esquerda PSOE, será crucial numa futura coligação de governo com este último. Libertada das pressões que sofre Sánchez (vindas do seu próprio partido e de fora) para não fazer cedências arriscadas aos catalães, a também titular da pasta do Trabalho não está limitada no que toca a propor soluções audazes para a presente encruzilhada política espanhola.

Os votos de catorze deputados separatistas (metade do JxC, metade da Esquerda Republicana da Catalunha, que governa atualmente a região) são fundamentais para Sánchez poder ser reconduzido após a previsível tentativa falhada de Alberto Núñez Feijóo (Partido Popular, centro-direita), evitando uma repetição das eleições. O partido de Puigdemont é especialmente exigente: em troca do apoio, quer uma amnistia para todos os envolvidos no processo judicial pela intentona independentista de outubro de 2017 e um referendo em que os catalães indiquem se querem continuar a fazer parte de Espanha, além de outras reivindicações de cariz económico.

O Governo de Sánchez respondeu repetidas vezes que as concessões têm como limite a Constituição. Em teoria, a consulta popular que os independentistas exigem é impossível. Já a amnistia, até há poucos meses um tema tabu, começa a ser objeto de discussões políticas abertas. Juristas de diversas convicções têm dado pareceres técnicos sobre essa questão.

Amnistia? Só se todos ficarem a ganhar

No dia do encontro de Díaz e Puigdemont, outro antigo presidente do governo regional catalão, o socialista José Montilla, contribuiu para o debate ao afirmar, em entrevista ao diário progressista “El País”, que “quem quiser falar de amnistia deve comprometer-se a não repetir os mesmos gestos”. Cada vez menos dirigentes independentistas dizem “voltaria a fazê-lo” em relação à frustrada declaração de independência de 2017. O critério de Montilla com o dos peritos em Direito Constitucional que defendem que o Executivo poderia conceder uma amnistia dentro do quadro legal se esta tiver efeito político benéfico para toda a sociedade, como, por exemplo, a renúncia dos nacionalistas a utilizar a via unilateral para conseguir a independência da Catalunha.

Díaz criou, há semanas, um grupo de especialistas jurídicos para desbravar o caminho legal para cumprir as exigências dos partidos catalães para a investidura de Sánchez. À frente da tarefa pôs Jaume Assens, ex-deputado da formação Em Comum Podemos, versão catalã da aliança esquerdista Unidas Podemos, hoje englobada no Somar. Assens manteve um diálogo fluido com Puigdemont, à distância. A sua equipa de assessores ajudou a organizar o encontro deste com Díaz em Bruxelas, no qual, de resto, Assens também participou.

O Governo não se sente comprometido pelo movimento de Díaz e muito menos com os acordos que esta alcance com Puigdemont. Informa o departamento de comunicação do Executivo: “Fomos informados de factos consumados, à última hora da noite. Mantemos a nossa própria dinâmica negociadora e dispomos de interlocução direta com os interessados”.

O primeiro-ministro explicou esta segunda-feira, numa conferência no Ateneu de Madrid, os termos das negociações em curso, conduzidas na maior discrição, com os putativos sócios de investidura. Além das 16 formações de esquerda agrupadas no Somar e dos partidos independentistas catalães, o PSOE fala com o Partido Nacionalista Basco, o Bloco Nacionalista Galego e o Euskal Herria Bildu (Unir o País Basco, outrora ligado ao grupo terrorista ETA).

Sánchez explicou que enquanto a legislatura passada foi a dos indultos aos condenados no processo catalão e da reforma dos delitos de sedição e desvio de fundos, a que agora se abre tem de servir para “deixar realmente para trás a fratura” do conflito político catalão. “Queremos deixar para trás um passado de trincheiras. Apostamos no diálogo e na concordia”, assegurou. “É o tempo da audácia, da política, de continuar a avançar na convivência.”

O Governo de coligação, que quer ser reeditado, já teve gestos de “boa vontade” para com a ERC e o JxC. Fez eleger presidente do Congresso dos Deputados uma catalanista convicta, Francina Armengol, antiga presidente do governo regional das ilhas Balares; permitiu que os dois partidos catalães tivessem grupo parlamentar próprio, com o que isso implica de subvenções e poder de intervenção; autorizou o uso das línguas co-oficiais do Estado (catalão, galego e basco) nas sessões ordinárias do Parlamento; e abriu caminho para que se tornem oficiais na União Europeia.

Feijóo tenta tirar o máximo partido de uma investidura falhada à nascença

O conservador Feijóo, vencedor das legislativas de 23 de julho, também negoceia a sua investidura, proposta pelo rei Filipe VI e marcada para 26 e 27 de setembro. Todo o espectro político espanhol sabe que a tentativa será vã e inútil, por lhe faltarem os apoios necessários (176 deputados na primeira tentativa, mais deputados a favor do que contra na segunda) para governar.

Os dirigentes do PP admitem a futilidade do seu esforço. O único rédito positivo da situação insólita é que durante estes dias Feijóo está sob o foco mediático e acumula pontos para se consolidar internamente como líder do partido, onde já se ouvem vozes discordantes.