Internacional

Eichmann, o burocrata do terror

Era o cérebro que coordenava a deportação em massa dos judeus para os campos de extermínio. Passou uma década escondido na Argentina, até Israel o descobrir e o julgar, condenando-o à morte, faz agora 50 anos.

Adolf Eichman durante o julgamento num tribunal em Israel, numa caixa de vidro à prova de bala e sempre acompanhado por dois polícias, em maio de 1962
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Eram 18h30 do dia 6 de maio de 1960 quando um homem de aspeto vulgar, esguio e ligeiramente calvo descia de um autocarro nos subúrbios pobres de Buenos Aires. Segundo os documentos que guardava no bolso, chamava-se Ricardo Klement, imigrante oriundo de Bolzano, no norte de Itália. Regressava a casa - uma vivenda de tijolos construída pelo próprio, sem eletricidade nem água corrente - depois de uma jornada de trabalho na fábrica da Mercedes-Benz, o primeiro posto fixo (de mecânico) que arranjara desde a sua chegada à capital argentina, dez anos antes.

Já tinha sido agente de vendas, funcionário de lavandaria, ajudante numa criação de coelhos. Ao sair do autocarro, àquela hora de lusco-fusco em que se acendem os candeeiros de rua, esperava-o um acontecimento fora da rotina a que se habituara: três homens precipitaram-se sobre ele e conduziram-no a um carro rumo a uma casa, na qual permaneceria oito dias amarrado a uma cama e que abandonaria para ser introduzido num avião da El Al, as linhas aéreas israelitas.

O homem, que em momento algum se defendeu, que anos antes afirmara por escrito estar cansado do anonimato em que vivia, ao ser questionado sobre a sua identidade, não hesitou em assumi-la: "Ich bin Adolf Eichmann."

A monte durante 15 anos A história de Eichmann na Argentina é a história de um fugitivo bafejado pela sorte. No fim da II Guerra Mundial, capturado por soldados americanos sob o apelido de Eckmann e colocado no campo de prisioneiros de Oberdachstetten, conseguiu escapar no momento em que, nos julgamentos de Nuremberga, o seu nome enquanto colaborador de Himmler diretamente ligado à Solução Final começava a ser citado com regularidade.

Após a fuga, graças ao contacto de um prisioneiro do campo, trabalhou quatro anos como lenhador perto de Hamburgo, adotando o nome de Otto Heninger. Em 1950, a ODESSA, uma associação de veteranos das SS, transferiu-o para Itália, onde um padre franciscano lhe forneceu um passaporte de refugiado em nome de Ricardo Klement, enviando-o para a Argentina. Por lá, não resultou difícil obter documentação e visto de trabalho, em que figurava como um homem solteiro de 37 anos, embora fosse casado e tivesse 44.

Dos seus despedira-se em 1945, não sem lhes deixar umas quantas ampolas de veneno para o caso de serem presos pelos russos. De resto, tanto a mulher como os três filhos deram-no por morto até 1952, data em que se lhe juntaram.

O 'orgulho' no seu verdadeiro apelido impediu-o de obrigar a família a renunciar a ele, usando-o também no registo do quarto filho, nascido em solo argentino. Chamou-lhe Ricardo Francisco Klement Eichmann.

A fidelidade ao apelido redundou num erro crasso. Lothar Hermann, um socialista alemão que fugira para a Argentina depois de estar detido do campo de Dachau, em 1938, seria a pedra angular deste caso de sorte transformada em azar. Quando a sua filha Sylvia se envolveu com Klaus Eichmann, um dos descendentes do dirigente nazi, Hermann lembrou-se de ver este nome num artigo sobre um julgamento de crimes de guerra a decorrer em Frankfurt e decidiu informar as autoridades alemãs.

Estas, na pessoa do procurador Fritz Bauer, comunicaram a descoberta ao Estado de Israel, que enviou um agente a Buenos Aires em 1958 mas não levou o assunto muito a sério: reconhecido o terreno, concluiu-se que um alto cargo das SS não podia viver num bairro tão degradado. A insistência de Bauer - apoiante da extradição de Eichmann para a Alemanha - levou a que Israel voltasse a dar ouvidos a Lothar Hermann, que continuou a fornecer dados cada vez mais certeiros, precisamente aqueles de que aMossad viria a servir-se para, naquele 6 de maio, às 18h30, caçar o burocrata que coordenou a deportação de milhões de judeus para os campos de extermínio, uma vez posta em marcha a engrenagem cega da Solução Final.

"O arrependimento é para as crianças." A frase seria ingénua, se não fosse monstruosa.

Foi proferida por Adolf Eichmann em Jerusalém, durante o processo que o condenaria à morte por enforcamento, na única vez que um tribunal israelita sentenciou a pena capital.

Divertimento. Em Bergen-Belsen, com outros ofciais nazis a cortarem o cabelo a um prisioneiro judeu. Eichmann é o segundo a contar da direita
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Iniciadas a 11 de abril de 1961, as sessões duraram quatro meses, envolveram mais de 100 testemunhas e foram precedidas por um interrogatório de 100 horas. As 76 fitas magnéticas que daí resultaram foram transcritas em mais de 3500 páginas que ao próprio Eichmann coube validar.

Um SS modelo Ao longo das audiências na Casa da Cultura, preparada para acolher 700 pessoas, fechado numa cabina de vidro à prova de bala, Eichmann ouviu vários trechos destas gravações. Ouviu-se a dizer coisas como: "Ser oficial é cumprir o dever de acordo com o juramento. Eu era um SS fiel, meticuloso, devoto. Se o senhor comissário me tivesse dito, nessa altura, que o meu pai era um traidor e que devia abatê-lo, eu tê-lo-ia feito." E ouviu as 15 acusações de crimes de guerra, contra o povo judeu e contra a humanidade, que lhe foram endereçadas, em relação às quais se declarou inocente. A defesa foi conduzida por Robert Servatius, um advogado alemão de Colónia que fora defensor de um outro criminoso de guerra, Karl Bandt, em Nuremberga.

Percorrer os meandros deste famoso julgamento significa não apenas reconhecer os diferentes passos da ascensão e queda do III Reich como também assistir à progressão e declínio de um homem mediano, apreciador de frases feitas, nascido em Solingen, Alemanha, e criado na cidade austríaca de Linz, estudante medíocre, que o pai tirara primeiro do liceu e depois da escola profissional (embora documentos oficiais do regime nazi o fizessem engenheiro) e que foi sobretudo vendedor nos vários empregos que teve antes de, em1932, aos 26 anos, se filiar no Partido Nacional-Socialista e ingressar nas SS.

"De uma vida banal, sem significado nem importância, o vento tinha-o empurrado para aHistória, tal como ele a entendia, isto é, para um movimento que nunca se detinha e onde um homem como ele (...) podia começar do zero e construir ainda uma carreira", escreveu a filósofa Hannah Arendt, que relatou par- te do julgamento para a "New Yorker". Em 1933, inicia treinos militares e é promovido a cabo, embora a monotonia dessa vida fosse "difícil de suportar". Em 1934, serve no campo de concentração de Dachau, ao tempo que, entediado, se candidata para o Sicherheitsdienst, ou SD, criado por Himmler no seio das SS. Rapidamente foi colocado num departamento destinado ao estudo das questões judaicas.

E mais rapidamente ainda começou a ganhar fama de especialista nestes assuntos.

Em 1937, ao ser enviado para a Palestina a fim de indagar sobre uma possível emigração em massa dos judeus, Eichmann acolhe a viagem como um sinal de qual viria a ser a sua meta: "colocar alguma terra firme sob os pés" daquele povo, "ajudando-o" a emigrar.

Um ano depois, aquando da anexação da Áustria, ao ser enviado para Viena a fim de chefiar o Centro de Emigração dos Judeus Austríacos - que se ocupava da expulsão de todos os judeus do país -, não cabia em si de felicidade. Ao tribunal de Jerusalém falou com saudades desse tempo em que era elogiado pelos seus "profundos conhecimentos dos métodos de organização e da ideologia do adversário, o povo judaico". Oito meses bastaram para que 45 mil judeus saíssem da Áustria. E 18 meses foram suficientes para que 150 mil pessoas - 65 por cento da população judaica ali residente - seguissem a mesma via. O sucesso foi tal que outros Centros de Emigração foram abertos em cidades como Praga ou Berlim. O propósito de tornar o Reich Judenrein (livre de judeus) avançava a passos largos quando estala a II Guerra Mundial, em setembro de 1939.

Eichmann, que já era Obersturmführer (tenente), é chamado a Berlim para dirigir o departamento judaico da Gestapo. Pouco depois ascende a líder da recém-criada secção IV-B-4 do Departamento de Segurança do Reich (RSHA), que concentra todas as diligências para a deportação dos judeus da Alemanha e dos territórios ocupados.

Perto do auge da sua carreira, é obrigado a mudar de meta, pois a expulsão deixara de ser a fase final da 'solução' para o problema judeu. Em 1940, ainda tenta pôr em marcha a ida de quatro milhões de judeus para Madagáscar, que sai gorada. E, quase sem dar por isso, é promovido a Hauptsturmführer (capitão), enquanto as evacuações em massa para os campos se iniciam - atingindo velocidade de cruzeiro em 1941 -, o mecanismo dos gaseamentos vai sendo oleado e prosseguem os fuzilamentos a Leste. Eichmann assiste a um deles, em Minsk.

Noutra ocasião, encarregam-no de visitar as instalações para as futuras câmaras de monóxido de carbono (utilizado antes do gás Zyklon-B) em Treblinka. Testemunha igualmente in loco o modo de funcionamento dos camiões de gás móveis, que partiam do campo de Chelmno rumo a uma vala aberta.

"Aquilo pareceu-me monstruoso. Não sou tão insensível que consiga suportar uma coisa daquelas sem reagir... Ainda hoje, quando alguém me mostra uma ferida aberta, sou incapaz de olhar para ela", confessou ao tribunal.

Foi como Obersturmbannführer (tenente-coronel) que Adolf Eichmann participou,em janeiro de 1942, na Conferência de Wannsee, onde altos cargos do regime se reuniram para coordenar esforços na aplicação da Solução Final.

Para ele, enquanto oficial menos graduado do encontro, este representou um privilégio fora do normal. "Naquele momento, experimentei uma sensação semelhante àquela que Pôncio Pilatos terá experimentado, pois senti-me livre de toda a culpa", disse em Jerusalém.

Os participantes discutiram "os diversos tipos de soluções" para o que já era assumido como aniquilação física, embora no registo da conferência (que foi 'limpo' de vocabulário comprometedor) apenas se diga que, nas marchas de judeus para trabalhos forçados a Leste, haveria "indubitavelmente" muitas perdas e que os sobreviventes deviam ser tratados "apropriadamente", pois representam o "coração de um renascimento judeu".

Obediência virtuosa. Durante o julgamento, em momento algum o acusado admitiu responsabilidade perante o assassínio em massa, embora concedesse saber qual o destino dos judeus que enchiam os comboios. Escudou-se sempre na obediência devida ao seu empregador: "A minha culpa reside na minha obediência, no meu respeito pela disciplina e nas minhas obrigações militares em tempo de guerra", repetiu até à exaustão. Obedecer é um ato virtuoso de qualquer subordinado, acrescentou, "e os subordinados são agora vítimas.

Eu sou uma dessas vítimas". A defesa alegou que a desobediência seria paga com a morte - o que não ficou provado, pois o regime costumava atender os pedidos de mudança de funções. E esboçou a teoria, mirabolante para o leitor de hoje, de que com as emigrações forçadas anteriores à guerra Eichmann teria salvo centenas de milhares de judeus.

Entre os relatos que nos dão conta do processo, o mais destacado é "Eichmann em Jerusalém", de Hannah Arendt, cujo subtítulo ("Uma Reportagem sobre a Banalidade do Mal") resume bem as suas impressões sobre o réu. Para Arendt, este não era um caso de "ódio demente aos judeus" ou de "antissemitismo fanático". Era alguém capaz de se queixar, ao judeu que o interrogou durante 100 horas, de não ter conseguido ser mais do que um tenente-coronel. Era um homem para quem a derrota alemã significou que "teria de viver uma vida individual, difícil, sem um chefe a quem obedecer (...) nem regulamentos importantes para consultar". Era um alemão que não se exprimia bem em alemão, que apenas dominava a "linguagem administrativa" dos lugares-comuns, que nada teve a ver com o extermínio dos judeus, que nunca matou um judeu ou um não-judeu, que - como disse quando o julgamento já ia avançado - nunca precisou de o fazer.

Cabe perguntar: como é que alguém assim comete atos monstruosos? A resposta pode ser encontrada no livro de Jonathan Littell "As Benevolentes", que descreve Eichmann como um funcionário "pressuroso e atarefado", sedento por apresentar relatórios, inchado pela mera hipótese de se encontrar face a face com Himmler, cabeça das SS, e que falava mediante "uma sintaxe burocrática particularmente enredada".

"Voltaremos a encontrar-nos" Não se enredou, no entanto, ao proferir a sua declaração final perante o tribunal. Disse não ser um monstro, mas um subalterno obrigado a "curvar-se" a valores ditados pelo Estado que servia.

Omitiu que mesmo quando Himmler se tornou um "moderado" ele tentara prosseguir com as deportações. Não pediu desculpa aos mais de 400 mil judeus da Hungria, cuja morte pessoalmente negociou em maio de 1944. E não se lembrou de que o documento Sassen (uma entrevista dada por Eichmann a umjornalista holandês pró-nazi em Buenos Aires, cujo manuscrito foi aceite como prova) guardava frases como esta: "Não lamento nada. Devo dizê-lo sinceramente: se tivéssemos morto os 10 milhões e 300 mil judeus que constavam das estatísticas do III Reich, ficaria satisfeito, diria a mim próprio: muito bem. Matámos um inimigo."

Os três juízes condenaram-no àmorte por enforcamento, mau grado o pedido de clemência que Eichmann lhes dirigiu e o recurso interposto pelo seu advogado. "A política não é um infantário", sentenciou o tribunal, "em política, obediência e apoio são uma e a mesma coisa. E como o senhor apoiou e executou uma política que consistia em não querer partilhar a Terra com o povo judaico e de várias outras nações (...) pensamos que ninguém, nenhum ser humano, pode querer partilhar a Terra consigo." "Voltaremos a encontrar-nos", disse Eichmann, antes de dar três vivas à Alemanha, à Áustria e à Argentina, recusar que lhe tapassem os olhos e, com grande autocontrolo, caminhar para o cadafalso. O seu corpo foi cremado e as cinzas lançadas no Mediterrâneo.

 

Texto publicado no Expresso a 26 de novembro de 2011