Internacional

Francisco no momento mais difícil do seu pontificado

No trono de São Pedro há dez anos, o Papa enfrenta problemas de saúde e polémicas doutrinárias no seio da igreja, que nunca esteve tão dividida desde que assumiu o seu comando. À crise alemã soma-se o risco de cisma na Índia

Criado cardeal por Francisco, Fridolin Ambongo Besungo, da República Democrática do Congo, é um dos maiores críticos da decisão de abençoar pessoas que mantêm relações homossexuais
TIZIANA FABI/AFP/Getty Images

Filipe d’Avillez

O pontificado do Papa Francisco poderá estar a atravessar o seu momento mais difícil, com crises em diferentes pontos do mundo católico a pôr seriamente em causa a autoridade de Roma e a própria unidade da Igreja. A declaração “Fiducia Supplicans” causou polémica na Igreja, com o Dicastério para a Doutrina da Fé a anunciar que pessoas em uniões homossexuais podem receber bênçãos. Sem surpresas, a ideia que passou para o mundo foi que o Papa acabava de aprovar a bênção de uniões homossexuais, apesar de o texto dizer explicitamente que a bênção é para as pessoas, e em caso algum para a relação em si.

No seguimento dessa declaração aconteceu algo muito pouco comum, com muitos padres, bispos, e até conferências episcopais inteiras a dizer que não aplicarão a “Fiducia Supplicans” nos seus territórios. Segundo o blogue conservador “One Peter Five”, são dez as conferências episcopais que reagiram negativamente ao documento, algumas proibindo a sua aplicação, outras apenas reiterando a proibição de bênçãos específicas para relações e uniões homossexuais. Embora várias destas conferências episcopais sejam de países africanos, incluem também a Polónia e o Canadá.

E se é verdade que algumas reações negativas vieram dos “suspeitos do costume” — bispos alinhados com fações tradicionalistas que há muito resistem ao rumo que o Papa imprimiu à Igreja, como o bispo auxiliar Athanasius Schneider, de Astana, no Cazaquistão, ou do bispo Strickland, nos EUA, sem diocese desde que o Papa o removeu em novembro —, também há nomes de bispos tidos como próximos de Francisco, como Ambongo Besungo, da República Democrática do Congo, que faz parte do grupo de cardeais consultores do Papa desde 2020 e chegou a pedir resposta conjunta de todos os bispos africanos, na qualidade de presidente do Simpósio de Conferências Episcopais de África e Madagáscar.

Ambiguidade e perplexidade

Talvez uma das respostas mais firmes tenha sido do arcebispo maior Sviatoslav Shevchuk, líder da Igreja Greco-Católica da Ucrânia, a maior das cerca de duas dezenas de igrejas católicas de rito oriental, que se demarcou do documento, dizendo que não se aplica à sua Igreja. Shevchuk tem tido uma relação complicada com Francisco desde o início da Guerra na Ucrânia, criticando frequentemente a sua posição sobre o conflito, mas são amigos e conhecem-se há muitos anos, pois Shevchuk liderou a comunidade ucraniana na Argentina, que estava integrada na arquidiocese de Buenos Aires quando Francisco era o arcebispo.

Em causa nas reações adversas ao documento não está uma acusação ao Vaticano de alterar a doutrina, mas de o documento ser ambíguo. Ou seja, teme-se que a confusão entre abençoar pessoas em uniões homossexuais e a bênção das próprias uniões acabe por levar a uma prática que ponha em causa a doutrina católica. Na sua carta aos outros bispos africanos, o cardeal Besungo escreve: “A ambiguidade desta declaração, que se presta a muitas interpretações e manipulações, está a causar muita perplexidade entre os fiéis.”Embora fique aquém de uma acusação de heresia, dizer que uma declaração é ambígua não é propriamente elogioso para o departamento da Santa Sé responsável por clarificar a doutrina católica. Pior quando uma das vozes que se unem a esse coro é a do antigo prefeito do mesmo dicastério, o cardeal Gerhard Müller, que também se tem afirmado como um dos líderes da oposição a Francisco.

Alemanha mantém o rumo

Perante a chuva de críticas e reações negativas, o prefeito do Dicastério para a Doutrina da Fé, cardeal Fernández, deu uma série de entrevistas em que reafirma que não se está a abençoar uniões e diz que partes da Igreja precisam de tempo para assimilar o documento. Em entrevista ao jornal digital “The Pillar”, afirma: “Os casais são abençoados. A união não é abençoada. É por isso que a declaração explica repetidas vezes o verdadeiro sentido do casamento cristão e das relações sexuais. Para quem lê o texto com serenidade e sem preconceitos ideológicos, é claro que não existe alteração à doutrina do casamento e da valorização objetiva de atos sexuais”.

Outra citação interessante da entrevista de Fernández diz respeito a países e regiões que já começaram a implantar bênçãos litúrgicas para uniões e não só para indivíduos em relações homossexuais, como a Bélgica e a Alemanha. O prefeito classifica essas medidas como “inadmissíveis” e diz que “devem reformular as suas propostas a esse respeito”. É mais uma troca de tiros no conflito entre Roma e a Igreja Católica alemã, que persiste num “caminho sinodal”.

A maioria dos bispos alemães continua a defender este caminho, que envolve maior participação dos leigos nas tomadas de decisão sobre a governação pastoral da Igreja, incluindo na nomeação de bispos, e que apelou explicitamente a mudanças na doutrina moral e sexual da Igreja, tendo caráter marcadamente progressista e liberal. Francisco já criticou o “caminho sinodal”, dizendo que “a Alemanha já tem uma Igreja evangélica, não precisa de outra”, mas tem evitado tomadas de posição mais firmes que possam acelerar a divisão ou promover uma rutura.

Esta atitude, contudo, leva as alas mais conservadoras a estranhar a dualidade de critérios, recordando que o Papa tem tido mão firme contra outras comunidades, como os tradicionalistas, que viram limitada a liberdade que Bento XVI concedera para a celebração de missa de acordo com a liturgia anterior ao Concílio Vaticano II.

Índia: guerras litúrgicas ao contrário

O clima de desconfiança entre Roma e os grupos tradicionalistas espalhados pelo mundo tornou-se conhecido como a “guerra litúrgica” e torna ainda mais bizarro o que está a acontecer na Índia, onde o clero de uma diocese inteira pode estar prestes a ser excomungado. Trata-se da diocese de Ernakulam-Angamaly, principal da Igreja Siro-Malabar, a segunda maior igreja católica de rito oriental do mundo, a seguir à já referida igreja ucraniana. Tem mais de quatro milhões de membros, e só a diocese de Ernakulam tem 500 mil, com pelo menos 400 padres.

Como outras igrejas de rito oriental, a Siro-Malabar tem a sua própria liturgia, de origem siríaca, muito anterior à chegada dos portugueses à Índia. Contudo, essa liturgia sofreu muitas influências latinas ao longo dos séculos, que a Igreja tem tentado retificar. Uma dessas influências levou a que nalgumas dioceses, incluindo Ernakulam, os padres passassem a celebrar a liturgia voltados para a comunidade, em vez de seguir a tradição oriental de celebrar voltados para o altar.

Como parte do esforço de uniformização e regresso às raízes litúrgicas, o sínodo da Igreja Siro-Malabar chegou a uma fórmula de consenso em que os padres celebram voltados para os fiéis, exceto a liturgia eucarística, em que se voltam para o altar. Todas as dioceses aceitaram, menos a de Ernakulem, onde padres e fiéis se revoltaram de tal forma contra as novas regras que a polícia encerrou a catedral para evitar cenas de violência e grupos de fiéis queimaram efígies de cardeais da cúria romana.

Falhadas tentativas de mediação, o Papa enviou uma mensagem para a diocese em que pediu aos padres para “não se tornarem uma seita”, sublinhando que a persistência na desobediência poderia levar à excomunhão. Francisco deu até ao Natal para se começar a celebrar o novo rito, mas no dia 25 de dezembro os padres da diocese limitaram-se a celebrar missa de acordo com essa liturgia, deixando claro que o faziam por respeito a Francisco, e que ela não se tornaria regra. A possibilidade de acordo não está descartada, mas o braço de ferro mantém-se.

Tem sido sublinhada a ironia de o Vaticano estar, de um lado, a pressionar os fiéis de rito latino que querem celebrações com o padre voltado para o altar e, do outro, a ameaçar com excomunhão padres e fiéis que querem celebrar voltados para o povo, embora as situações não sejam idênticas. O que as duas realidades revelam é que Francisco tem entre mãos uma Igreja Católica universal cada vez mais dividida, com conflitos abertos sem solução evidente à vista.

Acresce que a idade avançada do Papa e a sua saúde frágil tornam menos provável que consiga resolver estas crises antes do final do seu pontificado, até porque os seus opositores podem estar dispostos simplesmente a esperar que seja eleito o seu sucessor, para terem novo parceiro de diálogo. Tal implica que todas estas questões — bênçãos a homossexuais, caminho sinodal alemão e as frentes das guerras litúrgicas — possam vir a desempenhar um papel importante no próximo conclave.