Internacional

Urge proteger as crianças dos livros? Nos Estados Unidos as ameaças à liberdade de expressão vêm de extremos opostos

A censura literária cresce nos Estados Unidos, embalada pela polarização política. Mais de 300 obras foram contestadas só no último trimestre de 2021. Os extremos estão juntos na luta

Nem o prémo Pulitzer nem os numerosos elogios que tem conhecido nos últimos 30 anos livraram “Maus”, de Art Spiegelman, de ser censurado por conter palavrões e personagens nuas FOTO BERTRAND LANGLOIS/AFP/Getty Images

Xi Van Fleet revolta-se contra a escola dos filhos, que, na opinião desta chinesa emigrada para os Estados Unidos, pretende convertê-los em “guerreiros pela justiça social”. Durante uma reunião de pais, recorreu ao passado do seu país de origem para comparar a realidade americana de hoje com o período da revolução cultural planeada por Mao Tsé-Tung. “Estou alarmada com que se passa. Na China usaram a mesma lógica, mas baseada na classe social. Hoje, por aqui, fazem o mesmo, usando a raça para nos colocar uns contra os outros.”

A plateia, conservadora e radicada no sul do estado da Virgínia, aplaude a intervenção de pé. Quase em tempo real, o canal de televisão Fox News, conotado com a agenda da extrema-direita, divulga uma pequena notícia no site com o seguinte título: “Mãe da Virgínia que sobreviveu à China maoísta destrói política de um distrito escolar”.

Este episódio tornou-se viral no verão passado. Xi Van Fleet explica ao Expresso que se referia em específico à teoria racial crítica, uma linha de pensamento com décadas de maturação nas universidades americanas, que examina como os conceitos de raça e direito se intercetam na História da América. Segundo os defensores desta teoria, o passado do país deve ser escrutinado à luz da injustiça racial.

A tese levou a que vários livros fossem banidos dos currículos escolares, o que revoltou a direita americana, com vários líderes do Partido Republicano a capitalizarem politicamente. “Destruíram tudo o que não era comunista: estátuas, livros, etc.”, lembra Van Fleet, referindo-se ao “pesadelo” orquestrado no Império do Meio. “Para muitos chineses que escolheram viver na América, é uma desilusão perceber que, após escaparmos ao comunismo, voltamos a vivê-lo”.

Gregory Peck desempenhou o papel de Atticus Finch numa adaptação cinematográfica de “To kill a mockingbird” (1962) FOTO Universal History Archive/UIG/Getty images

Foi com base neste sentimento que, nas eleições do passado mês de novembro, o republicano Glenn Youngkin derrotou o democrata Terry McAuliffe, tornando-se governador da Virgínia, ao arrepio das sondagens. Com muito menos dinheiro para gastar do que o adversário, Youngkin investiu em iniciativas como uma linha telefónica SOS para pais que quisessem denunciar alegadas “práticas polarizadoras”.  

O fenómeno continua e, no final da semana passada, o estado de Washington, um dos mais progressistas na América, tirou das escolas “To Kill a Mockingbird”, de Harper Lee (publicado em Portugal com o título “Mataram a cotovia” ou “Não matem a cotovia”, consoante as edições). O clássico da literatura americana dos anos 60, baseado na história de um advogado branco que defende um negro acusado de violação no estado do Alabama — um dos últimos a abandonar as políticas segregacionistas —, foi sempre referência nas salas de aula, servindo de narração alegórica sobre o racismo.

Os responsáveis do estado de Washington, na costa do Pacífico (não confundir com a cidade capital dos Estados Unidos) consideraram que a linguagem usada na obra, própria do tempo que retrata, é “insuportável” nos dias que correm. A personagem do causídico Atticus Finch, empenhado na defesa do negro injustamente acusado, configura uma espécie de “salvador branco”, ou seja, uma “figura opressora”, leu-se num comunicado.

“Muitos dos livros banidos descrevem formas de viver outrora legais e morais, vividas há décadas, séculos… servem para ensinar às nossas crianças que existe progresso e que as normas evoluíram”, afirma ao Expresso Robert Thompson, fundador do Bleier Center for Television and Popular Culture, na Universidade de Syracuse. “O problema é que os factos deixaram de ter relevância. O que interessa é marcar pontos no debate político, sem respeito, humildade ou coerência intelectual”, lastima o pensador, conhecido nos círculos académicos americanos como embaixador da pop culture.

Extrema-esquerda e extrema-direita no mesmo barco

Na semana passada, este assunto voltou à tona, depois da suspensão da atriz Whoopi Goldberg do painel de comentadora do “The View”, popular programa matinal da estação televisiva ABC. A decisão surgiu depois de um painel de cinco pessoas ter debatido a decisão de um distrito escolar do Tennessee de proibir o livro “Maus”, novela gráfica de Art Spiegelman sobre o Holocausto, premiada com o prémio Pulitzer, em que os judeus são ilustrados como ratos, os alemães como gatos, os americanos como cães e os polacos como porcos.

Naquele caso, a agenda ultraconservadora desvalorizou o essencial, justificando a decisão unânime com a existência de palavreado “inapropriado” e “nudez desnecessária” (quando se ilustra factos como o extermínio de judeus nos campos de concentração). “Ou seja, impedir a nudez é mais relevante do que ensinar os horrores do Holocausto aos nossos jovens”, lamenta Robert Thompson.

Goldberg, única negra do painel do “The View”, contrariou a opinião maioritária do grupo, que considerou a decisão do Tennessee mais um exemplo de como a maioria branca tenta, constantemente, apagar os seus crimes da História. A atriz argumentou que “Maus” espelha a desumanidade absoluta entre indivíduos, mas não elabora sobre o racismo, pois os judeus assassinados e os agressores alemães possuem a mesma cor de pele.

As redes sociais explodiram de indignação, lembrando a formulação do Governo de Hitler, de que os judeus seriam uma raça inferior. O afastamento de Goldberg concretizou-se, mesmo contra a vontade das outras quatro intervenientes.

A Carta de Direitos, que contém as primeiras dez adendas à Constitução dos Estados Unidos, consagra a liberdade de expressão D.R.

Num país onde a liberdade de expressão está prevista logo na primeira adenda à Constituição, a noção de censura literária, supostamente para proteger as mentes dos mais novos, tornou-se o mais recente foco de tensão social. As comunidades conservadoras restringem compêndios que retratam a História da escravatura e opressão segregacionista, ao mesmo tempo que as liberais cancelam publicações como as do famoso autor de livros infantis Dr. Seuss (de quem vieram personagens como o Grinch ou o Gato com Chapéu) por apresentarem conteúdo racista e insensível.

Segundo a “American Library Association”, 330 livros foram alvo de queixa só no último trimestre do ano passado. Por comparação, em 2020 registaram-se 156 ocorrências daquele tipo. Enquanto os adultos se digladiam, os mais novos recorrem ao ativismo puro. Quando, por exemplo, o distrito escolar da cidade de York, na Pensilvânia, retirou das bibliotecas um conjunto de obras rotuladas de “antirracistas”, os alunos do secundário protestaram nas ruas durante semanas.

“Estava muito frustrada”, lembra ao Expresso, Edha Gupta, líder estudantil local. “Quando se perde o norte do ponto de vista moral, urge mudar de direção. Podemos ser poucos, mas não precisamos de ser muitos para que o diálogo se inicie”. A professora Patty Jackson ajudou-os nos preparativos, o que lhe trouxe dissabores. “Agrediram-me verbalmente. Estive em risco de perder o emprego”, conta-nos. “Houve pais furiosos a exigir que eu e outros colegas nas mesmas circunstâncias fossemos despedidos. Alegaram que tínhamos incitado os miúdos a protestar e que estávamos a traumatizar as crianças brancas, que ficaram envergonhadas ao lerem livros sobre a História dos negros na América”.

“Um tsunami de raiva”

A fúria parental generalizou-se. Jonathan Friedman é presidente da PEN America, organização que ajuda instituições e indivíduos a combaterem a censura nas escolas dos Estados Unidos. “É um tsunami de raiva, resultado em parte da pandemia, que fez disparar os níveis de frustração, mas também encorajado por organizações de dimensão nacional com interesse político, que lucram em polarizar a sociedade”.

Friedman explica ao Expresso que muito do receio infundado baseia-se no discurso de alguns políticos, caso do antigo Presidente Donald Trump, que lançam “suspeitas” sobre as matérias escolares. “Inspirados pelas insinuações, os pais mobilizam-se e arrasam qualquer livro que tenha uma perspetiva de nuance sobre tópicos como o racismo.” 

Este perito resume o que está em causa. “Infelizmente, o que estamos a ver é que quanto mais furiosas e sonoras são as opiniões, mais autoridade ganham no ensino da Literatura, História e Ciência. Mais do que as dos próprios professores”. Com a política americana fraturada, a Educação tornou-se nova frente de batalha, contrariando a ideia, segundo Friedman, de que “a escola deve ser um lugar onde todos nos juntamos num ambiente seguro e progressista”.