Internacional

Por entre fotos e ‘fogo amigo’, Boris Johnson vai aguentando… até quando?

Primeiro-ministro antecipa fim das restrições sanitárias no dia em que imprensa publica mais uma foto comprometedora das festas em Downing Street

Anúncio publicitário troçando de um primeiro-ministro desorientado FOTO Richard Baker/Getty Images

Boris Johnson vai resistindo como pode. E há que dizer que tem podido. O primeiro-ministro britânico já sobreviveu a conflitos de interesses de um deputado (Owen Patterson, a quem tentou defender, indo ao ponto de tentar vergar as regras parlamentares, mas que acabou por renunciar ao cargo), ao financiamento irregular da remodelação do seu apartamento por um aliado político, às intervenções sibilinas do ex-assessor Dominic Cummings e — até agora — às revelações sobre festas ilegais na sua residência durante o confinamento pandémico. Esta quarta-feira uma fotografia que o mostra numa dessas festas apimentou a novela, mas não foi alcançado o limiar de descontentamento que pode ditar a sua queda.

Esse limiar será avaliado “pelo partido, mais do que por Johnson”, afirma ao Expresso a professora Ana Isabel Xavier, do Centro de Estudos Internacionais do ISCTE (Universidade de Lisboa). Em causa estará um “difícil equilíbrio entre não perder a maioria na Câmara dos Comuns, conquistada em 2019, e não comprometer as eleições locais e regionais de maio”. Ou seja, entre a capacidade eleitoral demonstrada pelo líder do Partido Conservador no referendo do ‘Brexit’ ou nas últimas legislativas e a sua baixa popularidade atual. “Sempre que se pensa que é too much, também se torna manifestamente exagerado o fim da linha”, reforça a académica.

Associa a recente mini-remodelação no gabinete do governante à vontade de “minorar o acumular de escândalos”, numa situação que “prece politicamente insustentável”. Saíram figuras associadas às festas ilícitas, como o secretário privado de Johnson, Martin Reynolds (que fizera o convite para mais de 100 pessoas, em 2020, irem conviver “trazendo a sua própria bebida”), e entraram pesos-pesados como Steve Barclay, antigo ministro do ‘Brexit’, agora chefe de gabinete do primeiro-ministro. Outras quatro figuras próximas demitiram-se da equipa do primeiro-ministro.

Calúnia alimenta atos de violência

As mudanças em Downing Street não foram livres de polémica. Munira Mirza, uma das pessoas de maior confiança de Johnson e sua colaboradora desde os tempos da Câmara Municipal de Londres, em 2008, demitiu-se com uma dura carta. Não teve nada que ver com o Partygate, mas com a calúnia que o líder do Governo lançou sobre o líder da oposição na semana passada. Johnson acusou Keir Starmer de, enquanto procurador da Coroa, não ter querido acusar Jimmy Savile, figura da rádio e da televisão que abusava sexualmente de menores.

Era falso. Starmer não esteve envolvido no caso e, quando presidiu à procuradoria, até pediu desculpa por falhas passadas. Na passada segunda-feira, um grupo de manifestantes anti-restrições sanitárias cercou o chefe dos trabalhistas, que teve de ser ajudado pela polícia. Propunham o seu enforcamento, usando entre outros os argumentos mentirosos que Johnson lançara no Parlamento. Vários deputados trabalhistas, mas também conservadores, criticaram o governante e exigiram-lhe desculpas públicas. O mesmo fizera Munira Mirza, mas Johnson preferiu dar outra interpretação das suas palavras, sem as retirar.

Outro pomo de discórdia foi a nomeação do deputado Mark Spencer para ministro dos Assuntos Parlamentares (em substituição de Jacob Rees-Mogg, que passou a ministro do ‘Brexit’). Spencer está sob investigação por ter dito à deputada Nusrat Ghani — era ele líder da bancada parlamentar ­— que uma das razões para o seu afastamento do cargo de secretária de Estado, em 2020, fora o facto de ser muçulmana.

Cereja no topo do bolo foi a descrição de Johnson feita pelo seu novo diretor de comunicações, Guto Harri. Em entrevista ao tabloide “Daily Mail”, afirmou que o governante “não é um palhaço completo”. Terá ficado proibido de dar mais entrevistas.

Esta quarta-feira, dia do último debate semanal com os deputados antes de uma pausa na atividade parlamentar, Johnson despertou com outro tabloide — o “Daily Mirror”, próximo do Partido Trabalhista — a divulgar uma imagem em que aparece com colaboradores próximos numa das badaladas festas, que incluiu até um quiz de Natal. Com ele está, enfeitado com uma grinalda, Stuart Glassborow, que era o vice-secretário do gabinete de Johnson. Ao lado, uma garrafa de espumante e um pacote de batatas fritas.

O consolo do chefe do Executivo é que o evento em causa — a 15 de dezembro de 2020, quando estavam proibidos convívios não-essenciais entre pessoas de agregados familiares diferentes — não é dos que estão a ser investigados pela Polícia Metropolitana de Londres (Met), por cujas conclusões se aguarda. O fim do inquérito criminal permitirá também a divulgação na íntegra do relatório da funcionária Sue Gray, que conduziu uma averiguação interna mas só pôde revelar um resumo, para não interferir com o trabalho da Met. Do que já se sabe, aponta “falhas de liderança e de juízo”, sem nomear diretamente Johnson. O Governo, após pressão da oposição, prometeu publicar o documento na íntegra após o fim do inquérito policial.

Cummings, ex-aliado do primeiro-ministro, seu cúmplice na campanha pela saída da UE em 2016 e depois chefe de gabinete (defenestrado em 2019), não perde uma ocasião de criticar o antigo patrão. “Há fotos muuuuuito melhores do que essas a flutuar por aí, inclusive no apartamento”, escreveu na rede social Twitter. Serão centenas, segundo a imprensa social do Reino Unido.

Fim das restrições antecipado

Contra a barragem de casos bicudos, Johnson acena ao eleitorado com o fim das restrições motivadas pela covid-19, no final deste mês e não, como estava previsto, a 2 de março. Onde há imposições, passará a haver apenas recomendações. E o país irá “gerir a vida com o coronavírus”, pois está “a entrar na fase endémica”, afirmou um porta-voz de Downing Street aos jornalistas.

A pausa parlamentar, até 21 de fevereiro, dá fôlego ao primeiro-ministro. Se até agora o partido não decidiu destituí-lo, esperará que a nova dinâmica no gabinete e a reação popular ao aligeiramento de medidas façam o resto. A falta de um sucessor claro joga a seu favor. “O pragmatismo estratégico do partido parece querer guardar os trunfos de Rishi Sunak ou Liz Truss para um too much ainda por definir”, afirma Ana Isabel Xavier, referindo o ministro das Finanças e a sua colega dos Negócios Estrangeiros, vistos como putativos sucessores de Johnson.

Recorde-se que 15 deputados conservadores (além da oposição em bloco) exigem a demissão de Johnson. Esta quarta-feira juntou-se-lhes o empresário John Armitage, apoiante do partido. “Quando se perde a autoridade moral, quando se faz ou diz coisas que desagradam à pessoa média — a nossa mãe, alguém que admiramos —, coisas que ficam mal na primeira página do ‘Sunday Times’, e que se faz consistentemente, denunciando o sentimento de quem realmente não quer saber, o melhor é ir embora”.

Se 54 deputados da bancada conservadora propuserem a deposição do primeiro-ministro (número que representa 15% do grupo parlamentar), terá de haver uma votação interna para decidir essa questão. A única pessoa que sabe quantos já o fizeram (além dos que manifestaram tal vontade em público) é o deputado Graham Brady, que chefia o comité 1922 (o qual reúne os deputados conservadores sem funções governativas). Só quando o limiar é atingido é que Brady divulga tal circunstância em público e organiza a votação.

Se esta acontecer, das duas uma: ou Johnson é afastado e não pode concorrer à seguinte eleição para a liderança do partido, ou é poupado e tem um ano de período de graça, sem poder haver nova censura interna. Muitos deputados estarão à espera das conclusões do inqúerito policial antes de enviarem cartas a Brady, até porque esse gesto implica riscos de publicidade que podem prejudicar a sua carreira política se a censura fracassar.

Crise russa “politicamente instrumentalizada por Johnson”

Outro fator que pode adiar uma crise política interna é a ideia de que, com uma crise diplomática no leste da Europa que pode degenerar em guerra, o momento não propicia mudanças na liderança do país. Ana Isabel Xavier pensa que, mais do que inquietar os britânicos, a questão Rússia-Ucrânia “tem sido politicamente instrumentalizada por Johnson”, que “vai pedir ao Parlamento sanções contra indivíduos e empresas russas e pondera o envio de caças Typhoon da Força Aérea Real e navios de guerra da Marinha Real”. Objetivo é “desviar atenções”.

Mais acima na lista de prioridades dos britânicos estão, afirma a perita, a instabilidade na Irlanda do Norte (onde o chefe do governo autónomo se demitiu em protesto pelas dificuldades que o ‘Brexit’ causa no território). O último relatório do Comité de Contas Públicas, afirma Xavier, “é perentório ao afirmar que o ‘Brexit’ tem afetado de forma dramática as empresas do Reino Unido, com maciços aumentos de custos, burocracia e atrasos nas fronteiras”. A situação tende a piorar e a nomeação para esta pasta de Rees-Mogg, “fervoroso ativista da saída do bloco europeu”, é “uma jogada política para manter o caminho de recuperação da soberania com necessários impactos positivos para os britânicos”.