Internacional

E o pássaro cantou: o poema e a poeta que iluminaram a tomada de posse de Biden

Amanda Gorman, de 22 anos, é a mais jovem poeta a intervir numa tomada de posse presidencial nos Estados Unidos. Receou não conseguir, estava exausta, o desafio era enorme, mas o ataque ao Capitólio naquele 6 de janeiro afinou-lhe a mente e a pena

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No papel estava o corpanzil do poema que inventou nos últimos dias - 710 palavras - para colar os cacos de um país que agora muda de Presidente, num dos dedos da mão direita Amanda Gorman levava o peso da poesia inteira e da ação. Era um pássaro numa gaiola, o anel dourado foi-lhe oferecido por Oprah Winfrey, em homenagem a Maya Angelou, autora de vários livros, como “Eu Sei Porque o Pássaro Canta na Gaiola”, que falavam de racismo, identidade, família e viagens. Angelou, ou Marguerite Annie Johnson, foi poeta, atriz, cantora, bailarina, escritora, cozinheira, jornalista e também esteve presente numa tomada de posse presidencial, foi na de Bill Clinton, em 1993. Morreu aos 86 anos em maio de 2014.

Gorman, de 22 anos, nasceu e foi criada em Los Angeles. Começou a escrever quando era uma miúda, deixou-se levar pela poesia pouco depois. Estudou Sociologia na Universidade de Harvard e, além de ter recebido uma série de distinções e prémios desde os 16 anos, já foi convidada para falar em eventos vários em lugares importantes, como a biblioteca do Congresso. É a mais jovem poeta dos Estados Unidos a subir ao púlpito de uma tomada de posse presidencial. As páginas do “New York Times” foram em tempos uma das moradas das palavras de Amanda, uma jovem poeta que tem dois livros a caminho da gráfica.

Autora do livro de poesia “The One for Whom Food Is Not Enough”, publicado em 2015, Amanda Gorman chegou a ser convidada para ir à Casa Branca enquanto lá morava a Administração Obama. Opressão, feminismo, raça e marginalização são alguns dos temas que trata. “Uma menina magrinha e negra, descendente de escravos e criada por uma mãe solteira”, descreveu-se assim na intervenção desta tarde.

“Quando chega o dia, perguntamo-nos onde podemos encontrar luz nesta sombra sem fim?”, assim começa o texto de Amanda Gorman. Neste dia, 20 de janeiro, fica marcado o adeus de Donald Trump, cujo mandato dividiu violentamente um país inteiro. Neste dia, 20 de janeiro, começou a governação de Joe Biden, um homem com uma vida trágica. Este dia, 20 de janeiro, assinala-se a primeira vez que uma mulher (e afro-americana) alcança o cargo de vice-presidente daquele país. Neste dia, 20 de janeiro, fica gravado como o dia em que Amanda Gorman, com o seu elegante penteado e casaco amarelo, usou a caneta para lembrar quem esqueceu a democracia. “Estamos a esforçar-nos para formar uma união com um propósito, para compor um país comprometido com todas as culturas, cores, personagens e condições do homem”, foi dizendo num jeito teatral, auxiliada pelas mãos, leves e serenas.

Algures no poema diz assim: “Encerramos a divisão porque sabemos; para colocar o nosso futuro em primeiro lugar, devemos primeiro colocar as nossas diferenças de lado; largamos as nossas armas para que possamos esticar os nossos braços; não procuramos o mal a ninguém, procuramos a harmonia para todos; deixem o globo, senão outra coisa, dizer que isto é verdade: que mesmo quando tristes, crescíamos; que mesmo sofrendo, tínhamos esperança; que mesmo cansados, tentámos; que estaremos para sempre amarrados, vitoriosos, não porque nunca mais conheceremos a derrota, mas porque nunca mais semearemos a divisão outra vez”.

A leitura do poema demorou qualquer coisa como cinco minutos. Há duas semanas a autora estava à bulha com as hesitações e bloqueios intelectuais. Estava cansada, exausta, e temeu não estar à altura do acontecimento, admitiu ao “New York Times”. O poema “The Hill We Climb” seria sobre unidade nacional. Os olhos do mundo estariam em quem ousaria estacionar perto daqueles dois microfones cinzentos. “É provavelmente uma das coisas mais importantes que farei na minha carreira. Se eu tentasse escalar a montanha de uma vez, eu acabaria por cair para o lado”, convenceu-se, não se deixando sufocar. Gorman foi escrevendo alguns versos por dia mas isso mudou a 6 de janeiro, quando os apoiantes radicais de Donald Trump invadiram o Capitólio e colocaram ou mostraram que podiam colocar a democracia em xeque. E foi o que bastou, foi nessa noite que Amanda decidiu terminar o poema.

Sobre o ataque à democracia, o poema diz isto: “Nós vimos uma força que destruiria a nossa nação, ao invés de a partilhar; destruiria o nosso país se significasse adiar a democracia e este esforço quase teve sucesso; mas embora a democracia possa ser periodicamente adiada, nunca pode ser derrotada permanentemente; nesta verdade, nesta fé nós confiamos; por enquanto temos os nossos olhos no futuro, a história está de olho em nós, esta é a era da redenção justa”.

Gorman junta-se assim a um grupo de poetas que também esteve noutras tomadas de posse que ditaram outros ventos e outros rumos: Robert Frost, Miller Williams, Elizabeth Alexander, Richard Blanco são alguns exemplos, para além de Maya Angelou.

Ao “NYT”, antes da inauguration, Amanda Gorman revelou que não ia mascarar ou evitar o que se passou nas últimas semanas e nos últimos anos. “O que realmente aspiro a fazer no poema é ser capaz de usar as minhas palavras para imaginar uma maneira pela qual o nosso país ainda se pode unir e curar”, sem apagar e negligenciar as “verdades duras”, só assim as gentes dos Estados Unidos se poderão reconciliar, explicou.

E assim finalizou o poema, antes dos aplausos admirados: “O novo amanhecer nasce enquanto o libertamos, por isso há sempre luz, mas apenas se formos suficientemente corajosos para o vermos, mas apenas se formos suficientemente corajosos para o sermos".

O título do primeiro de cinco volumes da autobiografia de Maya Angelou, “Eu Sei Porque o Pássaro Canta na Gaiola”, foi inspirado no poema "Sympathy" de Paul Laurence Dunbar, que falava num pássaro que se atirava contra as grades da gaiola almejando a liberdade, sem deixar de cantar. Agora, tantas décadas depois dessas lembranças de menina de Angelou, Amanda Gorman cantou, livre, perante uma vice-presidente afro-americana que, sabe-se lá, um dia pode chegar à presidência.

Alex Wong

O poema de Amanda Gorman no idioma original

The Hill We Climb

When day comes we ask ourselves,
where can we find light in this never-ending shade?
The loss we carry,
a sea we must wade
We've braved the belly of the beast
We've learned that quiet isn't always peace
And the norms and notions
of what just is
Isn’t always just-ice
And yet the dawn is ours
before we knew it
Somehow we do it
Somehow we've weathered and witnessed
a nation that isn’t broken
but simply unfinished
We the successors of a country and a time
Where a skinny Black girl
descended from slaves and raised by a single mother
can dream of becoming president
only to find herself reciting for one
And yes we are far from polished
far from pristine
but that doesn’t mean we are
striving to form a union that is perfect
We are striving to forge a union with purpose
To compose a country committed to all cultures, colors, characters and
conditions of man
And so we lift our gazes not to what stands between us
but what stands before us
We close the divide because we know, to put our future first,
we must first put our differences aside
We lay down our arms
so we can reach out our arms
to one another
We seek harm to none and harmony for all
Let the globe, if nothing else, say this is true:
That even as we grieved, we grew
That even as we hurt, we hoped
That even as we tired, we tried
That we’ll forever be tied together, victorious
Not because we will never again know defeat
but because we will never again sow division
Scripture tells us to envision
that everyone shall sit under their own vine and fig tree
And no one shall make them afraid
If we’re to live up to our own time
Then victory won’t lie in the blade
But in all the bridges we’ve made
That is the promise to glade
The hill we climb
If only we dare
It's because being American is more than a pride we inherit,
it’s the past we step into
and how we repair it
We’ve seen a force that would shatter our nation
rather than share it
Would destroy our country if it meant delaying democracy
And this effort very nearly succeeded
But while democracy can be periodically delayed
it can never be permanently defeated
In this truth
in this faith we trust
For while we have our eyes on the future
history has its eyes on us
This is the era of just redemption
We feared at its inception
We did not feel prepared to be the heirs
of such a terrifying hour
but within it we found the power
to author a new chapter
To offer hope and laughter to ourselves
So while once we asked,
how could we possibly prevail over catastrophe?
Now we assert
How could catastrophe possibly prevail over us?
We will not march back to what was
but move to what shall be
A country that is bruised but whole,
benevolent but bold,
fierce and free
We will not be turned around
or interrupted by intimidation
because we know our inaction and inertia
will be the inheritance of the next generation
Our blunders become their burdens
But one thing is certain:
If we merge mercy with might,
and might with right,
then love becomes our legacy
and change our children’s birthright
So let us leave behind a country
better than the one we were left with
Every breath from my bronze-pounded chest,
we will raise this wounded world into a wondrous one
We will rise from the gold-limbed hills of the west,
we will rise from the windswept northeast
where our forefathers first realized revolution
We will rise from the lake-rimmed cities of the midwestern states,
we will rise from the sunbaked south
We will rebuild, reconcile and recover
and every known nook of our nation and
every corner called our country,
our people diverse and beautiful will emerge,
battered and beautiful
When day comes we step out of the shade,
aflame and unafraid
The new dawn blooms as we free it
For there is always light,
if only we’re brave enough to see it
If only we’re brave enough to be it