Internacional

Caso de padre pedófilo na República Centro-Africana leva Nações Unidas a suspender apoio à Caritas

Reportagem de CNN trouxe à luz o passado do padre Luk Delft, acusado de abuso de menores na Europa e colocado no país africano pela sua congregação, que sempre o protegeu. Delft esteve à frente da Caritas Centroafricana entre 2015 e 2019, tendo sido afastado apenas agora, quando vieram a lume mais duas acusações

Um dos centros de apoio comunitário geridos pela pela Igreja Católica e pela Caritas Centro-africana. O Padre Delft esteve à frente desta última desde 2015
Getty Images

Online, a página oficial da Caritas Internationalis lembra o trabalho feito na República Centro-Africana (RCA) e a ajuda prestada “a mais de 50 mil pessoas”, com “comida, medicação, apoio à educação, kits de higiene e na agricultura”. A confederação humanitária da Igreja Católica lembra que esteve “na vanguarda das iniciativas para promover a paz na região”, ainda que por estes dias não tenha sido esta a razão para ser notícia. O motivo foi outro, aquele a que se refere a nota também publicada no site e onde a Caritas se diz “triste e indignada” face aos casos de abuso sexual de menores relatados pela CNN, envolvendo o padre belga Luk Delft, que foi secretário nacional da Caritas Centroafricana de 2015 a 2019.

A nota foi publicada esta sexta-feira, dia em que as Nações Unidas anunciaram suspender temporariamente o seu trabalho com a filial da Caritas Internationalis na RCA: “Temos uma política de tolerância zero em relação à exploração e abuso sexual por parte do nosso próprio pessoal e dos nossos parceiros”, sublinha o comunicado emitido.

A suspensão manter-se-á enquanto decorram as investigações, até que estas “cheguem a um resultado claro”, acrescenta o comunicado, onde a organização também diz “continuar a valorizar o trabalho realizado pela Caritas em todo o país”.

“Acho estranho que as Nações Unidas retirem o apoio à instituição, o que significa retirar o apoio às pessoas que dele precisam”, disse ao Expresso Eugénio Fonseca, presidente da Cáritas Portuguesa: “Temos de distinguir entre as pessoas e as instituições”.

O problema é que, de acordo com a investigação da CNN, também uma instituição fica mal na fotografia. Quando a ordem religiosa dos Salesianos de Don Bosco - fundada precisamente para proteger crianças - destacou o padre Luk Delft para ir trabalhar junto de famílias vulneráveis na RCA, onde ficou à frente da Caritas, sabia que ele tinha sido acusado de pedofilia no passado, na Europa. Delft só foi afastado do cargo quando a CNN revelou a existência de novas acusações à congregação.

Durante anos, os salesianos encobriram os abusos do padre, de 50 anos, mudando-o sucessivamente de posto; incluindo alguns em lugares particularmente problemáticos no mundo.

“Neste caso a Caritas também foi uma vítima”, porque desconhecia o passado deste padre, considera o presidente da Cáritas Portuguesa. A ordem transmitiu que “estava tudo bem”, e isso não era verdade, explica.

Quanto ao caso denunciado - e a reportagem da CNN revela que o padre Luk Delft é acusado de ter abusado de pelo menos mais dois outros rapazes na RCA - Eugénio Fonseca diz ter ficado “horrorizado”. “Condenamos, obviamente. É preciso saber o que aconteceu e apoiar as vítimas, claro”.

Relato de abusos na Bélgica

No país, as autoridades abriram uma investigação, tal como o fez a Igreja belga. Enquanto escrutinam ambas o que aconteceu nos últimos anos, é o passado que volta à tona.

Em 2001 o padre Delft, então com 31 anos, desempenhava a função de guarda de dormitório num internato salesiano, o Don Bosco Sint- Denijs-Westrem, na cidade belga de Gante. Remonta a essa época a acusação de abusos contra dois rapazes, de 12 e de 13 anos, geralmente ocorridos durante a noite, quando o padre entrava no dormitório e os atacava enquanto dormiam.

A CNN falou com alguns dos jovens que frequentaram o Don Bosco – hoje adultos – que contaram como o padre circulava por entre as camas, acariciando muitos deles por baixo dos lençois e tocando-lhes nos genitais. Dois dizem ter denunciado a situação ao então subdiretor do internato, Wim Hanssens, com quem a estação televisiva também falou. Hanssens diz ter chamado de imediato o padre ao seu gabinete, confrontando-o com as acusações.

Ao princípio negou: “Disse ‘não é grave, apenas os acariciei’, mas quando lhe mostrei o testemunho escrito e leu tudo, confessou... Nesse momento ordenei que se fosse embora de imediato”, e o despedimento acabou confirmado pela direção.

À CNN Hanssens recordou como o padre teve ainda a “ousadia” de lhe escrever uma carta, para tentar recuperar a sua almofada e uns livros que emprestara a um dos rapazes – a quem o então subdiretor não chegou a entregar a falar no pedido. Mas Hanssens também referiu ter sentido que foi penalizado por fazer a denúncia. Pouco depois foi transferido para outra escola, a 160 quilómetros de casa.

Quanto a Luk Delft, os abusos não foram reportados à polícia. Foi colocado como coordenador académico num outro internato, o Don Bosco Sint-Pieters-Woluwe, noutra cidade belga. Supostamente para não ter contacto com jovens, o que não se concretizou pois o padre acabaria por participar numa viagem escolar.

Pornografia infantil no computador

Anos mais tarde, em 2009, foi encontrada pornografia infantil no computador do sacerdote, algo que alegadamente foi comunicado superiormente, aos salesianos em Roma. De novo transferido, o padre Delft passou então pelo Haiti (após o terramoto na ilha). Nunca teve de enfrentar a justiça.

No comunicado da Caritas Internationalis, a instituição expressa “compaixão e solidariedade com as crianças e as suas famílias”. “Têm o nosso total apoio para dizer a verdade. Na Caritas, trabalhamos constantemente para melhorar a nossa proteção às crianças, tanto na República Centro-Africana como no resto do mundo, onde a Caritas trabalha para ajudar as pessoas necessitadas. O nosso primeiro dever é proteger aqueles a quem servimos”, pode ler-se também.

Um capítulo triste, que atinge um dos países mais pobres do mundo, devastado pela violência desde 2013, também pela fome, e onde 63% da população precisa de ajuda humanitária urgente.