O primeiro-ministro do Reino Unido é uma pessoa em casa e outra no Parlamento, que utiliza como púlpito para bullying. Quem o afirma é a sua própria irmã, Rachel Johnson, cujas opiniões sobre a questão europeia estão nos antípodas das do governante. E que se juntou esta quinta-feira ao coro de críticas que Boris Johnson ontem suscitou com o tom que empregou num debate na Câmara dos Comuns, a seu ver “altamente repreensível”.
A tirada que mais indignação gerou foi dada em resposta a uma deputada trabalhista que o criticou por chamar “lei da rendição” ao diploma que obrigará, caso não tenha acordo para o Brexit até 19 de outubro, a pedir novo adiamento à União Europeia (UE). Segundo Paula Sherriff, “não se deve utilizar linguagem ofensiva, perigosa ou incendiária para falar de legislação de que não se gosta”.
A trabalhista invocou a companheira de bancada Jo Cox, assassinada durante a campanha para o referendo de 2016 por um nacionalista radical. “Muitos somos alvo de ameaças de morte e insultos todos os dias. Quero dizer ao primeiro-ministro que é frequente citarem as suas palavras: lei da rendição, traição, traidor. Estou farta. Temos de moderar a nossa linguagem”, propôs. Ao que Johnson respondeu “Nunca ouvi maior treta”, afirmando em seguida que a melhor forma de homenagear Cox era levar a cabo a saída da UE. Os trabalhistas vaiaram-no, já que Cox era europeísta convicta.
“Foi de particular mau gosto – para aqueles que choram uma mãe, deputada e amiga – afirmar que a melhor forma de honrar a sua memória é fazer aquilo contra o que ela e a sua família faziam campanha”, afirmou Rachel Johnson à Sky News. Lembrou que a deputada foi morta por alguém que gritou, antes do ato, “Reino Unido primeiro!”. O assassino é “alguém com tendências de extrema-direita que, é possível argumentar, é acirrada por este tipo de linguagem”.
Doctor Boris e Mister Johnson
Rachel Johnson – jornalista e escritora, apresentadora de televisão e antiga participante em reality-shows, com incursões na política para defender a UE (trocou o Partido Conservador pelos Liberais Democratas e concorreu ao Parlamento Europeu na lista pró-UE Change UK) – diz que o irmão, que ela ama, se transforma na arena política. “O Boris Johnson da tribuna parlamentar não é o Boris Johnson lá de casa”, afirma. “Se calhar, quando se coloca um homem diante da tribuna, ele torna-se uma pessoa completamente diferente. Passa a ser uma espécie de púlpito para bullying.”
“O meu irmão usa palavras como rendição e capitulação, como se as pessoas que se opõem à vontade abençoada do povo, definida por 17,4 milhões de votos em 2016, devessem ser enforcadas, arrastadas e esquartejadas, cobertas de alcatrão e penas”, afirmou Rachel Johnson, que votou pela permanência na UE há três anos. Pergunta-se se o irmão seguirá “uma estratégia deliberada para acelerar tanto o ritmo que faça as pessoas sentir que lhes roubaram a democracia ou que lhes traíram o voto… e que só se se agarrarem a ele e à sua retórica de homem forte poderão obter o que querem”
Enquanto a irmã do governante conservador falava à televisão, o Parlamento debatia uma questão urgente lançada pela trabalhista Jess Phillips, também ela alvo de ameaças de morte, sobre a oratória de Boris Johnson. Esta é, acusa a deputada, “trabalhara e inteiramente concebida para atear o ódio e a divisão”. Alegações apoiadas por vários membros da oposição e por deputados conservadores que Johnson expulsou do partido. O primeiro-ministro não esteve presente, preferindo delegar num subsecretário de Estado as respostas aos deputados.
Da enfermeira sádica aos três homens e um cão
Não é inédito Boris Johnson utilizar linguagem que outros consideram ofensiva, nomeadamente por ser sexista ou racista. Desde equiparar o acordo do Brexit da antecessora Theresa May a um “cagalhão” (epíteto que também usou para descrever os franceses) a dizer que as mulheres de burca parecem “caixas de correio” ou que Hillary Clinton, com “cabelo pintado de loiro e lábios amuados e um olhar azul gélido, parece uma enfermeira sádica num hospital psiquiátrico”.
Outros momentos polémicos aconteceram na Malásia, onde comentou o aumento de mulheres na universidade afirmando que provavelmente se inscreviam “para encontrarem marido”; e ao falar sobre a participação de Isabel II nas reuniões da Commonwealth, frequentemente realizadas em antigas colónias britânicas. Segundo Johnson, “a rainha adora a Commonwealth, em parte porque lhe garante multidões de pretinhos a aplaudi-la enquanto agitam bandeiras”.
O atual governante também defendeu um dia que aceitar o casamento homossexual não era diferente de aceitar “uma união entre três homens, e não apenas dois, ou mesmo entre três homens e um cão”. A legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo acabaria por ser aprovada por iniciativa do então líder do seu partido e do Governo, David Cameron.
Europa divide a família
O que também não é novo são as divergências entre os Johnson. O pai de Boris, Stanley, trabalhou na Comissão Europeia e é tão amigo da UE como Rachel, embora saia em defesa dos excessos retóricos do filho. Em entrevista ao Expresso, em abril, defendeu novo referendo sobre o Brexit. Stanley esteve na cerimónia de anúncio da escolha de Boris para líder conservador co Rachel e o irmão mais novo, Jo.
Jo Johnson, demitiu-se no início deste mês do Executivo (era secretário de Estado do Ensino Superior) por considerar que estava dilacerado entre “lealdade à família” (leia-se, ao irmão primeiro-ministro) e ao “interesse nacional” (a seu ver prejudicado pelas políticas de Boris). Já antes abandonara o Governo de May para defender a permanência na UE.
Há ainda outro irmão, Leo. Homem do mundo da finança e radialista, não tem intervenção política, embora partilhe tweets europeístas e tenha criticado fortemente Dominic Cummings, artífice da campanha pelo Brexit no referendo e hoje chefe de gabinete do primeiro-ministro