Um pastor norte-americano e um vidente britânico são os homens por trás de uma rede que distribui, no Uganda, uma "cura milagrosa" contra doenças como o cancro, a malária e até o VIH/Sida. A extensa investigação, levada a cabo pelo jornal britânico "The Guardian", fala de pelo menos 50 mil ugandeses de todas as idades a quem foi administrada a substância, feita a partir de lixívia industrial e conhecida como MMS, ou "miracle mineral solution". A criança mais nova que a experimentou tem 14 meses.
O pastor Robert Baldwin, de 52 anos, é quem dirige as operações desde a cidade de New Jersey, nos Estados Unidos, ajudado por Sam Little, de 25, ex-dono de um negócio já extinto e chamado "Psychic Sam", e atualmente radicado em Fort Portal, no oeste da Uganda. Segundo o "The Guardian", Baldwin importa as componentes da MMS — cloreto de sódio e ácido cítrico — da China para o Uganda, onde depois são misturados para produzir dióxido de cloro, uma potente lixívia utilizada na indústria téxtil.
Uma vez que a MMS é uma substância já proibida em países como o Canadá e a Irlanda, e que conduziu a processos por fraude nos Estados Unidos e no Reino Unido, Baldwin controla a sua distribuição por via de uma igreja por si criada, a "Global Healing" [Cura Global]. Deste modo chegou a outras igrejas no Uganda e treinou 1.200 clérigos na administração da MMS, oferecendo smartphones em troca. Cada um deles terá tratado cerca de 50 fiéis.
"Não queremos atrair atenção", disse Baldwin à ativista Fiona O'Leary, numa conversa ouvida pelo "The Guardian". "Quando se atrai atenção sobre a MMS, corre-se o risco de ter problemas com o governo ou as companhias farmacêuticas. Tem de se ser discreto. É por isso que organizei tudo através da igreja." Antigo estudante de enfermagem sem qualquer treino médico, Baldwin reconheceu que angaria fundos por meio de doações online, nunca porém nomeando a MMS. "Chamo-a 'healing water' [água curativa], para proteger-me a mim próprio."
Na mesma conversa, Baldwin justificou a escolha do Uganda para a aplicação da 'vacina': "A América e a Europa têm leis muito mais restritivas, pelo que não há tanta liberdade para tratar as pessoas. É por isso que trabalho com países em desenvolvimento. Aquelas pessoas dos países mais pobres não têm as opções das dos países mais ricos — são muito mais abertas a receberem as bênçãos que Deus lhes pôde dar."
Sam Little, o jovem britânico que colabora com Baldwin, é quem tem em parte financiado esta rede. Ao telefone com o "The Guardian", disse ter na família um caso de cura do cancro com MMS. "Comecei a investigar online e vi mais e mais vídeos de pessoas que foram curadas. Foi quando decidi testá-lo no caso da malária e viajei para África", contou.
Entretanto, um vídeo online da sua autoria mostra-o a 11 de março num hospital em Kyenjojo, na zona oesta da Uganda, a coordenar um ensaio clínico que, segundo afirma, provaria que a malária é curável com dióxido de cloro em apenas duas horas. O mesmo vídeo mostra nove pessoas, incluído um bebé de 14 meses, a tomarem duas doses cada uma do fluído. Nas imagens, Sam Little é visto a dar instruções aos funcionários do hospital local sobre as doses a administrar: 18 gotas para os adultos, 12 para as crianças entre os 5 e os 12 anos, e oito gotas para as que têm entre um e quatro anos. Little referiu também que está a repetir o ensaio em doentes de VIH/Sida, em diferentes zonas daquele país.
Um estudo científico, notou, evidencia que a MMS tem efeitos curativos. Este estudo, que data de 2018 e se baseia num teste que envolveu 500 pacientes de malária nos Camarões, foi assinado por Enno Freye, da Universidade Heinrich Heine, em Dusseldorf, na Alemanha. Contactada, a universidade revelou que, após uma revisão científica, encontrou o estudo "cientificamente inútil, contraditório e, em parte, eticamente problemático." Freye perdeu o título de professor e hoje já não está ligado à instituição.