Ismael Dada, moçambicano de 65 anos, não esquece o telefonema da filha, que vive na Beira, a zona mais afetada pelo ciclone Idai, na província de Sofala: “Ela ligou-me a chorar, a dizer que uma grande parte do teto tinha caído”. Foi obrigada a abandonar a casa e acolheu-a outro irmão, que também vive na mesma cidade. “Ela quer voltar para casa mas nós proibimo-la de o fazer”. Ismael Dada vive em Maputo, mas quatro dos seus filhos vivem na Beira.
O ciclone deixou ali mais estragos do que em qualquer outro lugar. De acordo com a Cruz Vermelha, que tem várias equipas no terreno, “90% da área ficou totalmente destruída”, e vários dias depois da passagem do ciclone pela Beira, na passada quinta-feira, muitas estradas continuavam cortadas devido às cheias que se seguiram. O ciclone afetou outras cidades de Moçambique e outros países, como o Zimbabwe, o Malawi e Madagáscar.
Os números oficiais mais recentes apontam para mais de 400 vítimas mortais –mais de 200 em Moçambique (segundo o último balanço divulgado pelo Presidente do país, que acredita que pode haver pelo menos 100 mil pessoas em risco de vida no seu país e decretou o estado de emergência nacional, assim como três dias de luto nacional), pelo menos 100 no Zimbabwe e pelo menos 56 no Malawi, onde foram afetadas mais de 920 mil pessoas, incluindo 460 mil crianças. Para as Nações Unidas, tratou-se “possivelmente do pior desastre natural de sempre a atingir o hemisfério sul”.
“A primeira coisa que se vê é destruição – e muita água”
Foi divulgado um comunicado na terça-feira à noite com as primeiras impressões de terreno, na Beira, do coordenador de emergência da Cruz Vermelha na Beira, Gert Verdonck, escrito de uma forma invulgarmente pessoal. “A primeira coisa que se vê é destruição – e muita água. A maioria das casas está danificada ou destruída. Há muitas dificuldades em encontrar água potável, sobretudo nos bairros mais densamente povoados e mais pobres.” Tenta-se retomar uma certa normalidade, “mas a busca por comida é constante”. “Por todo o lado veem-se árvores caídas, desenraizadas, e pessoas a tentar cobrir os buracos abertos nos tetos das suas casas. Continua a chover muito e demorará, certamente, muito tempo até as águas retrocederem.”
A maior preocupação tem a ver, no entanto, com os cuidados de saúde, ou a falta deles, explica Gert Verdonck. Ou porque as “ruas estão destruídas” e é impossível a deslocação até aos centros de saúde, ou porque os centros de saúde ficaram, eles próprios, “totalmente destruídos”. A transmissão de doenças através das águas também preocupa, assim como as doenças respiratórias, como pneumonia. “Continua a chover dentro das casas. As pessoas têm procurado abrigo nas escolas e nas igrejas, e também isso facilitará a propagação de doenças.”
Os outros filhos de Ismael Dada que vivem na Beira também foram afetados pelo ciclone: “Uma delas saiu de casa e quando voltou percebeu que tinha sido assaltada, que tinham roubado tudo o que estava lá dentro. E um dos rapazes ficou com o carro destruído por causa de uma placa que se desprendeu e caiu em cima dele”, conta ao Expresso.
Depois de conversar com um amigo, o conhecido escritor Adelino Timóteo, que se encontrava no dia do ciclone na Beira, Estácio Valói, fotojornalista moçambicano, percebeu que a situação não estava fácil mas nada fazia prever o que aí vinha: “O Adelino já falava da violência estrondosa do vento, das janelas a tilintar e das portas a abanar dum lado para o outro, mas ninguém imaginava que o nível de destruição viesse a ser este. O ciclone veio devastar o que sobrou das cheias das semanas anteriores”, diz ao Expresso.
Segundo o fotojornalista, as comunicações continuam interrompidas, há centenas de casas destruídas e sem tetos, “e muitas pessoas ainda em zonas remotas à procura de um lugar seguro”. Apesar das ofertas de ajuda internacional, Valói não tem dúvidas de que a reconstrução será “lenta, muito lenta”, sobretudo se as chuvas não pararem. “A ajuda internacional implica uma logística muito complexa. Há pessoas em zonas recônditas à espera de ser socorridas, os acessos são difíceis e há gente sem comer há vários dias.”
Equipa portuguesa a caminho da Moçambique
Na terça-feira, durante o debate quinzenal na Assembleia da República, o primeiro-ministro António Costa anunciou que os Ministérios da Defesa Nacional e da Administração Interna se reuniram para “articular as capacidades de Proteção Civil e das Forças Armadas para dar todo o apoio ao povo irmão de Moçambique”. E foi ainda publicada uma nota no site da Presidência da República a dar conta de uma conversa entre Marcelo Rebelo de Sousa o seu homólogo moçambicano. “Portugal procurará contribuir ao esforço de ajuda e reconstrução, quer diretamente, quer através da União Europeia e das Nações Unidas”, lê-se na nota de apoio e solidariedade.
O secretário de Estado das Comunidades Portuguesas, José Luís Carneiro, partiu na terça-feira à noite para Moçambique, acompanhado por uma equipa que irá fazer um “diagnóstico rigoroso” sobre a situação da comunidade portuguesa e os meios a disponibilizar. A equipa inclui elementos da Autoridade Nacional de Proteção Civil, do Instituto Nacional de Emergência Médica e do instituto Camões, e a ela vão juntar-se, entre sexta-feira e sábado, elementos do Ministério do Ambiente e responsáveis na área da saúde, assim como uma equipa da Direção-Geral dos Assuntos Consulares.
“É necessário fazer um levantamento tão rigoroso quanto possível”, afirmou ainda José Luís Carneiro à Lusa, aludindo às condições climáticas que se preveem desfavoráveis. É é também “necessário que Portugal articule a ajuda necessária junto da União Europeia”. “Moçambique, país irmão, está a passar por um momento dramático e vive uma situação de catástrofe humanitária, talvez a maior que viveu até hoje”, afirmou .
Quanto a vítimas portuguesas, o secretário de Estado repetiu o que já tinha sido dito assim que começaram a surgir as primeiras notícias sobre o ciclone – não há informação sobre vítimas mortais ou desaparecidos “mas ainda é prematuro retirar ilações definitivas”.
Organizações como a Cruz Vermelha Portuguesa e a Cáritas já se mobilizaram para ajudar, com alimentos ou dinheiro, e a União Europeia fez o mesmo, tendo anunciado na terça-feira um apoio de emergência de 3,5 milhões de euros. Também a Índia anunciou o envio de três navios com ajuda humanitária para Moçambique.