Internacional

Um Nobel da Paz que embaraça os senhores do mundo

Atribuído à Campanha Internacional para a Abolição das Armas Nucleares, o Nobel da Paz deste ano não desencadeou polémicas. Um analista português do Instituto de Investigação para a Paz de Oslo leu o prémio nas entrelinhas e explica por que o considera “altamente político” e uma derrota para a política externa portuguesa

Beatrice Fihn, diretora executiva da Campanha Internacional para a Abolição das Armas Nucleares (ICAN), e Daniel Hogsta, coordenador, celebram o Nobel da Paz, na sede da organização, em Genebra, Suíça
Denis Balibouse / Reuters

A atribuição de um Nobel da Paz a causas — e não tanto a personalidades — isenta a escolha, normalmente, de grandes críticas e polémicas. Foi o que aconteceu este ano com a distinção da Campanha Internacional para a Abolição das Armas Nucleares (ICAN), uma organização não governamental com sede em Genebra e parceiros em mais de 100 países. Limpar o mundo de um poder tal, mortífero e destruidor, não pode, humanamente, merecer objeções. Mas...

“Apesar de ser tentador pensar que este é um daqueles Nobel que nos provoca boas sensações, em que se premeia uma ONG sem entrar em polémicas com os Estados mais poderosos, interpreto este Nobel como sendo altamente político”, comenta ao Expresso Bruno Oliveira Martins, investigador no Instituto de Investigação para a Paz de Oslo (PRIO). “Envia uma mensagem forte a todos aqueles que foram e são responsáveis pelo contexto internacional em que estamos. Pela primeira vez em muitos anos, um conflito nuclear internacional não parece totalmente impossível.”

Nos últimos meses, dois assuntos competem perigosamente para pôr o mundo à beira de um ataque de nervos. Por um lado, a crescente tensão no Pacífico, com a Coreia do Norte a testar, com regularidade, armas nucleares cada vez mais potentes e ameaçadoras, e a retórica entre Pyongyang e Washington a ganhar contornos cada vez mais belicistas.

Este sábado, recorrendo ao Twitter, Donald Trump deitou mais lenha para a fogueira: “Os Presidentes e os seus governos andam há 25 anos a falar com a Coreia do Norte, foram feitos acordos e pagas grandes quantidades de dinheiro... e não funcionou, os acordos foram violados antes da tinta secar, fazendo de tolos os negociadores dos Estados Unidos. Desculpem, mas só uma coisa vai resultar!”

Um segundo tema quente é a incerteza quanto ao futuro do acordo internacional sobre o programa nuclear iraniano, alcançado em Viena, a 14 de julho de 2015 e assinado pelo P5+1 (EUA, Rússia, China, Reino Unido, França e Alemanha) e pelo Irão. Esta semana, durante uma sessão fotográfica, na Casa Branca, com responsáveis militares, com quem se reuniu, Donald Trump afirmou, de forma enigmática, diante dos repórteres: “Vocês sabem o que é que isto representa? Talvez a calma antes da tempestade...”

Apesar da insistência dos jornalistas, o Presidente dos EUA não concretizou a que se referia, mas não faltou quem recordasse que a 15 de outubro a Administração norte-americana tem de certificar o cumprimento do acordo por parte de Teerão — um procedimento que se repete a cada 90 dias. Se a Casa Branca concluir pelo incumprimento, poderá haver lugar à reintrodução de sanções económicas ao Irão por parte do Congresso.

Reunião de Donald Trump com altas patentes militares, na quinta-feira, na Casa Branca, Washington D.C.
Yuri Gripas / Reuters

“É inevitável pensar que entre os visados por este Nobel está, em primeiro lugar, Donald Trump e a sua Administração absolutamente errática e irresponsável”, refere o investigador português. “Trump está a criar instabilidade e imprevisibilidade nos dois cenários internacionais com mais potencial para conflito: Coreia do Norte e Irão. Naturalmente que as provocações principais surgem da Coreia do Norte, mas é verdade que essas provocações sempre existiram e sempre foram geridas de forma a conter a ameaça, não a potenciá-la.”

Um segundo alvo deste Nobel, para este analista, são os países que “boicotaram” o Tratado para a Proibição de Armas Nucleares, aprovado a 7 de julho passado, nas Nações Unidas. O documento, que resultou do trabalho da ICAN, passou com os votos de 122 países — nenhum deles detentor de ogivas nucleares, nenhum deles membro da NATO... “A palavra é mesmo boicote, porque, com a exceção da Holanda, que votou contra, todos esses Estados estiveram ausentes da votação”, diz Bruno Oliveira Martins.

Para além de estar ausente da votação, Portugal não participou nas negociações do Tratado, uma posição antecipada a 23 de dezembro de 2016, quando votou contra a resolução 71/258 da Assembleia Geral da ONU, que estabeleceu o mandato para os países negociarem o Tratado. Portugal argumenta que “as armas nucleares dos Estados Unidos são essenciais à sua segurança”, lê-se no sítio da ICAN. Esta posição é partilhada por outros 29 países, na sua esmagadora maioria membros da NATO. “Há que dizê-lo claramente que este Nobel vai explicitamente contra uma opção de política externa portuguesa”, comenta o investigador.

No sítio da ICAN, lê-se que o Tratado entrará em vigor assim que 50 países o ratifiquem. Até ao momento, foi assinado por 53 países e ratificado por apenas três, uma meta insuficiente para que possa aumentar a pressão sobre o “clube do nuclear” — sejam os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança das Nações Unidas (EUA, Rússia, China, Reino Unido e França) sejam países como Índia, Paquistão e Israel, detentores de arsenais atómicos e que nunca assinaram o Tratado de Não Proliferação Nuclear, em vigor desde 1970.

Tratado e Nobel são, por isso, instrumentos importantes para a cruzada anti-nuclear. “Obrigam a que haja um maior debate interno nos Estados e que a questão do desarmamento nuclear abandone o nicho das ONG pacifistas e entre na esfera da política real.”

O investigador do PRIO recorda que, no passado, esta fórmula já deu frutos. A 10 de outubro de 1997, a Academia Nobel atribuiu o galardão da Paz à Campanha Internacional para a Eliminação de Minas. Menos de dois meses depois, era assinado o Tratado de Otava, que entraria em vigor em 1999. “Gerou-se um grande consenso em torno de uma oposição incondicional às minas pessoais”, recorda o analista. “No caso do nuclear, estamos muito longe disso, mas este passo é importante.”

Yes, i can

A viver em Oslo, Bruno Oliveira Martins conhece de perto o trabalho do braço norueguês da ICAN e, através dele, a própria organização. “Julgo que a questão mais interessante em torno da ICAN é a estratégia e a lógica intelectual seguida para atingir os objetivos. A argumentação da ICAN tem a ver não com considerações geostratégicas ou geopolíticas, mas com princípios humanitários relacionados com o caráter arbitrário e desproporcional dos danos causados pelas armas nucleares.”

O investigador realça o facto da ICAN ser um movimento das bases, que emerge do seio da sociedade civil. “Está nos antípodas da política das grande potências que normalmente envolve as questões nucleares. É um movimento amplo, aberto, baseado em ONG e em muito voluntariado por parte de pessoas que efetivamente acreditam nesta causa e que entregam as suas vidas à luta por um mundo sem armas nucleares.

Subtilmente, a sigla, em inglês, ICAN tem um apelo implícito a esse voluntarismo e contributo individual: “i can” (eu posso, em inglês).

“Em vários países da NATO, sendo ou não potências nucleares — incluindo aqui na Noruega —, o trabalho desta organização, e dos seus parceiros, é sujeito a grandes pressões e críticas por parte dos governos nacionais, que os consideram idealistas e, por vezes, demagogos e populistas. Por tudo isso”, conclui, “este Nobel é efetivamente político.”