Um dos pilares dos direitos sociais europeus exige a garantia no acesso à habitação social, assim como o direito à assistência. Um projeto inovador desenvolveu uma forma de prestar apoio às pessoas em situação de sem-abrigo, na qual o processo é liderado pela vontade da pessoa e não são tomadas decisões por ninguém.
O projeto LEGOS “esteve muito tempo na gaveta”, mas em 2021 foi constituído com a inclusão de uma “perspetiva plural” e com o aval das próprias Câmaras Municipais para formar uma iniciativa única que atravessasse o Algarve “de uma ponta à outra”. A ideia “nasce com uma visão diferente focada nas pessoas”, afirma Fábio Simão, presidente da associação MAPS e coordenador do projeto.
Para se centrar na pessoa em situação de sem-abrigo, o projeto desenvolveu um modelo de intervenção baseado em gestores de caso, que se trata de um técnico de referência que acompanhava individualmente cada pessoa. “Na brincadeira, explicava o projeto LEGOS desta forma: imagine entrar numa loja de marca, em que uma mala custa 30 mil euros, assim que entra vai ter um funcionário para si, desde que está lá dentro até sair e efetuar a compra. Portanto, é um atendimento mais do que personalizado e foi isto que nós implementámos no projeto”, explica.
O gestor de caso estaria responsável de fazer crescer no sem-abrigo a “vontade de sair da rua”, respeitando o tempo da pessoa e orientando-a no processo. Fábio Simão rejeita que se pense que há quem não queira sair da rua. A trabalhar como voluntário há quase 20 anos, acredita que, na maioria das vezes, há vergonha e uma tentativa de se convencerem que a escolha é sua. “Só quem nunca dormiu na rua é que pode achar que há pessoas que querem aquela vida”, até agora “nunca tive uma situação que me convencesse de que isto é uma escolha das pessoas, isto é a alternativa possível”.
Esta abordagem diferenciadora implica que o técnico acompanhe a pessoa sem-abrigo ao médico ou aos serviços sociais, mas não imponha uma decisão, nem aja por ela de forma a proporcionar um regresso a uma vida independente. “É indigno e desumano exigirmos às nossas pessoas contrapartidas e tirar-lhes o direito de escolha”, é preciso “ajudar e guiar, tal como faríamos a um amigo”. As situações de fomentação desta autonomia podem ser muito simples, como a escolha de uma peça de roupa. “Acontece muito, nos bancos de roupa, as pessoas pedirem uma t-shirt, [o funcionário] agarra uma ou duas e são lhe dadas. Connosco não, a pessoa é que escolhe”, conta.
“Para uma pessoa que está na rua há cinco ou seis anos, há muita coisa que perdeu o sentido, como, por exemplo, lavar as mãos antes de comer, ter talheres para comer ou limpar a boca depois de comer. São pequenas coisas e há um desgaste físico e psicológico das pessoas. [Por isso], há uma necessidade enorme de reaprender”, afirma Fábio Simão. O objetivo é ensinar de novo os pequenos hábitos, para tal integraram os sem-abrigo em atividades como a recolha de lixo na praia, jardinagem na horta comunitária ou eventos sociais.
O projeto quis “humanizar as respostas e acabar com esta ideia do assistencialismo”, o que se revelou “muito difícil”. O coordenador da iniciativa recorda que lhe perguntavam se deveriam deixar que os sem-abrigo continuassem a consumir álcool, ao que respondia: “Não temos de impedir ninguém de beber, não temos de impedir nada, temos que criar a vontade na pessoa de deixar de beber”.
De forma a respeitar a vontade da pessoa, era aplicado um autodiagnóstico, no qual o próprio avaliava vários parâmetros como o trabalho, a saúde, a relação com os outros ou até os passatempos, para que a intervenção fosse feita nas áreas que propunha. Eram definidos “objetivos pequeninos, porque cada vitória é uma vantagem, um alento para que a pessoa queira mais e se torne mais ambiciosa”.
Além do gestor de caso, o projeto contava também com o apoio social e psicológico, ajuda na procura de emprego, um banco de roupa, lavandaria e, em alguns locais, um balneário. Incluía ainda o centro de residência da associação MAPS e um projeto piloto para prevenir que os jovens institucionalizados ao atingirem os 18 anos se tornassem sem-abrigo.
O trabalho desenvolvido durante três anos abrangeu sete concelhos, Albufeira, Faro, Lagos, Loulé, Tavira, Portimão e Vila Real de Santo António, e alcançou mais de 1100 pessoas, quase o dobro do objetivo inicialmente estabelecido. Conseguiu reintegrar a maioria destas pessoas, com uma taxa de reincidência “baixíssima” e ainda está a acompanhar sem-abrigo que foram sinalizados no início do LEGOS, em 2021. Atualmente, estão a desenvolver o projeto LEGOS 2.0 em mais um concelho, Olhão, e com um reforço nas equipas de intervenção.
Fábio Simão considera que o aspeto crucial para o sucesso do acompanhamento personalizado é nunca desistirem da pessoa. “As pessoas falham, mentem-nos, chamam-nos nomes, mas é uma técnica de sobrevivência e nós nem temos de ficar melindrados, nem ofendidos com isso, porque durante anos todos desistiram delas”, mas “vais lá todos os dias, nem que seja para dizer bom dia, porque vai haver um dia em que ele vai pedir ajuda ou vai responder ao bom dia. Vai haver um dia em que, além do bom dia, vais perguntar se está tudo bem, e assim é que se cria uma relação de confiança, o apoio e o início de uma reabilitação social”.
A ajuda imprescindível dos fundos comunitários
O projeto LEGOS foi desenvolvido pela associação MAPS – Movimento de Apoio à Problemática da Sida, que coordenou a parceria, pela GATO – Grupo de Ajuda a Toxicodependentes, CASA – Centro de Apoio aos Sem-Abrigo, GRATO – Grupo de Apoio aos Toxicodependentes e pela APF – Associação para o Planeamento da Família. Receberam o apoio de 746 mil euros através do programa Algarve 2020, cerca dos quais 597 mil euros foram provenientes do Fundo Social Europeu (FSE).
Também o projeto LEGOS 2.0, desenvolvido pela MAPS, GATO e CASA, foi apoiado financeiramente em dois milhões euros através do programa Algarve 2030, dos quais 1,2 milhões de euros são do FSE.
Fábio Simão garante que sem o financiamento “não existia projeto” e que ao ter permitido o desenvolvimento das atividades com sucesso fomentou a confiança de outras instituições. “Não é fácil para uma entidade decisora meter nas mãos de uma instituição um milhão de euros e dizer ‘fazes o projeto como tu quiseres’”, diz.
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