Geração E

A democracia pode ser divertida, acredita a MyPolis: e esta associação portuguesa já é vista como um exemplo na Europa

A associação sem fins lucrativos MyPolis leva a cidadania ativa e a democracia às escolas através de jogos e tem uma plataforma onde qualquer um pode sugerir uma proposta ao seu munícipio. Conheça a associação que desperta curiosidade no Parlamento Europeu e que desperta o sentido crítico nos mais novos

NUNO BOTELHO

Da pólis da Grécia antiga, onde os cidadãos decidiam a vida política, diretamente para o século XXI, a associação MyPolis quer aumentar a participação política das gerações mais novas. O objetivo é criar uma forma mais direta de participação e incentivar a cidadania ativa entre os mais novos.

A ideia surgiu da experiência de Bernardo Branco Gonçalves enquanto presidente de uma associação de estudantes durante a faculdade. Era complicado escutar a própria comunidade escolar e envolver os alunos para participarem, o que conduziu o jovem a questionar-se sobre como seria este problema ampliado nas autarquias, a nível nacional e europeu. Nesta descoberta, concluiu que é cada vez mais notório um afastamento “gritante” entre os representantes políticos e os jovens, o que cria um distanciamento das decisões que afetam os cidadãos.

“Os jovens e até mesmo as crianças querem ter um espaço de participação seguro, informal e direto, e muitas vezes isso é difícil com os mecanismos que temos de democracia representativa, em que somos chamados a participar de quatro em quatro anos nas eleições”, explica o diretor da MyPolis em entrevista ao Expresso.

Pedidos ao presidente da Câmara na ponta de um clique

Com a missão de tornar a democracia acessível a todos, a MyPolis tem uma plataforma que aproxima os cidadãos dos seus líderes autárquicos. À distância de um clique, qualquer um pode fazer propostas ao seu município, que posteriormente são analisadas pelos decisores políticos. Após esta avaliação são agendadas assembleias, onde os jovens e os políticos discutem as propostas. Com as sugestões é possível conquistar pontos que se traduzem em prémios. Como, por exemplo, bilhetes para espetáculos nos espaços culturais locais ou uma mensalidade gratuita na piscina municipal.

No total, já foram submetidas mais de 4.500 propostas, cerca de 500 foram apresentadas em assembleias e mais de 200 foram implementadas. Um dessas propostas, por exemplo, foi a criação da Festa da Juventude, em Lagoa, no Algarve, que se realiza pela terceira vez este ano e tem o objetivo de recolher bens alimentares para famílias carenciadas, promover o comércio local, assim como criar um festival totalmente direcionado aos jovens. Também já houve uma paragem de autocarro alterada em Torres Vedras ou mais diversidade de livros na biblioteca de uma escola em Algueirão-Mem Martins.

A cidadania entra na sala de aula para conferir “um reforço na parte da capacitação, para que as propostas tenham mais qualidade e estejam mais balizadas, por exemplo, com as competências de uma autarquia ou de um governo”.

Um dos municípios onde a MyPolis está presente é Portimão. Nesta cidade algarvia realizam assembleias entre os jovens e os representantes políticos sobre temas baseados no plano municipal da juventude. Durante aproximadamente um mês e meio, a equipa da MyPolis recolheu ideias junto dos jovens para apresentar nesta assembleia. “No início, foi muito difícil recolher estas propostas. Até que aconteceu a primeira assembleia, foram propostos alguns desafios, algumas dificuldades que havia em Portimão, foram selecionados duas ou três [propostas], e a partir daí a nossa plataforma teve uma enchente”, recorda Cristian Briceag, diretor de operações do projeto. Depois de serem implementadas algumas das sugestões, receberam mais de 200 propostas em poucas semanas.

A literacia democrática e a cidadania ativa também acontecem dentro das escolas

As portas da sala de aula abrem-se para deixar entrar os jogos que aumentam a literacia política e transformam os mais novos em agentes da mudança. “Temos muito esta ideia de transformar a democracia em algo divertido, que é algo que, à partida, parece impossível”, diz Bernardo, mas quando se coloca um “miúdo de 12 anos a jogar com o Presidente da Câmara um jogo de cartas, cria-se ali um espaço comum de diálogo estruturado, mas muito informal”.

Do 1.º ciclo até ao 12.º ano há atividades projetadas para despertar o espírito cívico, com base em cinco pilares: conhecer, explorar, idear, agir e partilhar. Ou seja, os estudantes conhecem o território, exploram os aspetos a melhorar na cidade, idealizam as ideias, tentam colocá-las em prática e, por fim, partilham essas propostas. “A disciplina de cidadania e desenvolvimento tem uma estratégia nacional para a educação e tem uma série de domínios que os professores têm de trabalhar”, explica Ilpo Lalli, pedagogo social da equipa MyPolis. O formato dos jogos desta associação “facilita imenso a vida do professor”, pois “quando [os alunos] vão fazer a exploração e a ideação, eles estão a criar propostas para a interculturalidade no território, ou ambiente ou segurança rodoviária”.

A variedade de jogos é alargada, desde o escape room digital ‘Mansão Civitas’, personalizável consoante o território em causa, em que os estudantes adquirem literacia política, até a jogos de tabuleiro, destinados a capacitar os estudantes para identificar e pensar soluções concretas para a comunidade. São “instrumentos de transformação do território”, diz Cristian.

No ano letivo de 2022-2023, quase 80% dos alunos que participam no projeto avaliam globalmente a experiência com uma classificação de sete ou superior, numa escala de zero a dez. Ilpo, que acompanha a integração dos recursos nas aulas, conta que “os alunos gostam imenso porque, de facto, é uma oportunidade para darem um contributo válido para a sua comunidade” ao sugerirem “uma proposta concreta, realizável e impactante”.

“Este projeto, além de ser para a literacia democrática, é um projeto que aposta muito no impacto local”, explica Cristian, no sentido em que é incentivada a ação. É preciso que os jovens sejam “transformadores sociais nos seus territórios” e que exista um trabalho conjunto entre as gerações mais novas e os representantes políticos. Atualmente, esta mudança é feita em mais de 30 territórios portugueses.

De Portugal para a Europa: a MyPolis transcende fronteiras e desperta a curiosidade dos deputados

Quando a associação começou a dar os primeiros passos, em 2017, Bernardo despediu-se da consultora financeira onde trabalhava para se dedicar completamente à sua ideia. “Tive a sorte”, admite sobre aquele que considera ter sido um processo “muito espontâneo”. A associação sem fins lucrativos, impulsionada pela Casa do Impacto, um centro de empreendedorismo de impacto para a sustentabilidade social e ambiental, já conquistou vários prémios. Em 2018, por exemplo, venceram o prémio Democracia Digital da Representação Portuguesa na Comissão Europeia.

“Este tipo de projetos são sementes que depois levam as pessoas, que neles participam, a envolverem-se mais tarde na política, que não tem de ser só na política partidária, podem ser os movimentos associativos”, explica o eurodeputado João Albuquerque, que convidou a equipa da MyPolis para apresentar o projeto no Parlamento Europeu (PE), em Estrasburgo.

Foi no SummerCEmp, a escola de verão da Comissão Europeia em Portugal, que o deputado socialista no PE descobriu o projeto. “A partir do momento em que eu o conheci, foi muito fácil apaixonar-me por ele”, admite ao considerar que a MyPolis impulsiona um aspeto fundamental: a promoção de participação e cidadania ativa nos jovens. João Albuquerque considera que projetos com este “acabam por dar um conhecimento de como funcionam as instituições e criam esta ideia de que nós não temos de ser só eleitores, com esta capacidade passiva, que é obviamente muito importante, mas também temos uma capacidade transformadora ativa”.

A equipa da MyPolis, constituída por 17 elementos, considera que foi uma honra serem convidados para apresentar a iniciativa no PE. Esta oportunidade permite explorar a Europa, estimular a literacia sobre as instituições europeias e o contacto direto dos jovens com os eurodeputados que representam. “Estivemos a testar no nosso mega laboratório, que é o território português. [Agora] queremos implementar noutros países europeus, fazer projetos-pilotos em diferentes contextos, entrar em escolas noutros países, arranjar parceiros noutros países e aqui há vários contactos e possibilidades muito concretas de fazer isso acontecer”, diz Bernardo.

A expansão para a Europa é um objetivo que, em breve, ficará mais perto de ser alcançado após terem sido a candidatura vencedora do Programa Cidadãos, Igualdade, Direitos e Valores (CERV), promovido pela Comissão Europeia. Agora, vão alagar o leque de ação e iniciar projetos em Espanha, Itália, Bélgica, Hungria e Polónia.

Outras oportunidades também poderão surgir após a receção muito positiva no PE. Os jogos despertavam a curiosidade de quem cruzava com eles e o diretor da MyPolis revela que “não só nos deputados portugueses, mas a própria Presidente do Parlamento” parou para fazer perguntas.

A curiosidade dentro do seio político não é novidade. Em 2018, através da iniciativa Portugal Inovação Social, que apoiava projetos de inovação na sociedade, integraram um projeto piloto, no qual lançaram uma app, a ‘Academia My Polis’, com o objetivo de ajudar os alunos, de forma interativa, a conhecerem mais sobre direitos humanos. A participação foi pela impulsionada pela então ministra da Presidência e da Modernização Administrativa, Maria Manuel Leitão Marques. A agora deputada no Parlamento Europeu “teve essa visão de, devido ao lado da inovação social, apostar em nós, e depois fomos implementando em cada vez mais sítios e em mais comunidades”, descreve Bernardo.

“Gostei muito de os ver no outro dia no Parlamento em Estrasburgo, porque vi que cresceram. Às vezes estes projetos são muito interessantes, mas depois não conseguem escalar, não conseguem crescer, não se conseguem manter”, explica a deputada do Partido Socialista ao Expresso.

Maria Manuel Marques Leitão destaca o papel de iniciativas como a MyPolis, enquanto instrumentos capazes de criar cidadãos com discernimento crítico e mais conscientes da realidade política envolvente. “A participação não é formar as pessoas para serem A ou B, quem faz isso são as juventudes partidárias. A participação é para lhes dar capacidade crítica, de escolher, de interrogar, de estimular a curiosidade para saber e depois poder fazer perguntas. E isso é muito importante que se faça desde pequenos, para que as pessoas desde novas não fiquem presas em bolhas”, afirma.

União Europeia quer combater “bolhas ideológicas” criadas pelas redes sociais

A preocupação em combater o microdirecionamento de anúncios ou mensagens nas redes sociais foi um dos aspetos impulsionadores do novo regulamento europeu sobre a transparência e direcionamento da propaganda política. Esta prática consiste na recolha de dados pessoais dos utilizadores por parte de redes sociais ou outras plataformas de serviços digitais para definir os interesses do utilizador e direcioná-lo para conteúdos consoante as suas preferências. Quando este microdirecionamento ocorre, o utilizador fica cada vez mais segmentado, preso numa ‘bolha’ que acredita ser a realidade.

“A questão dos dados para a publicidade política é mais grave porque permite criar bolhas de discussão que excluem o confronto. É uma questão muito grave na nossa educação política”, diz a ex-ministra, que foi relatora sombra desta legislação europeia. Para exemplificar a situação, explica que num jornal existem diferentes opiniões e notícias, que confrontam a perspetiva do leitor, enquanto na publicidade só se visualiza aquilo que for do agrado do utilizador e até lhe podem ser dirigidas notícias falsas. “Nestas técnicas de direcionamento, havia propostas um bocadinho mais exigentes, mas eu acho que finalmente se chegou a um bom equilíbrio para começar”, afirma.

Com esta lei, o órgão legislativo da União Europeia quer limitar a “publicidade que influencia o comportamento eleitoral”. Como tal, a utilização de dados pessoais para direcionar a propaganda política só pode ser feita se os dados tiverem sido recolhidos junto do titular e este tiver concedido a sua autorização. O uso de “dados muito sensíveis, que revelem a origem racial ou étnica, ou as opiniões políticas, será totalmente proibida”, explica Maria Manuel Leitão Marques.

O regulamento, aprovado pelo PE, já se vai fazer sentir nas eleições europeias a 9 de junho. Com o objetivo de reforçar a transparência, toda a publicidade política vai passar a estar rotulada como tal e vai permitir que o cidadão saiba por que motivo foi considerado público-alvo, quem patrocinou a publicidade e quanto foi pago por esta, assim como a que eleição ou referendo se refere. Estas regras não se aplicam aos comentários e opiniões sobre política publicados nas redes sociais.

Para aumentar a resistência dos atos eleitorais a interferências externas, também está proibida a prestação de serviços de propaganda política de países fora da UE nos três meses anteriores a uma eleição ou referendo. Além disso, vai ser criado um repositório público europeu de anúncios de cariz político, disponível online, onde será possível saber tudo o foi publicado durante uma eleição ou referendo, quem foram os patrocinadores e quanto se pagou pela publicidade. Este “é também um elemento importante para monitorizar este regulamento”.

“Com a publicidade online também há uma realidade diferente daquela que existia antes”, diz a eurodeputada. Enquanto a publicidade em outdoors é dirigida ao público em geral, no digital existe o tal microdirecionamento, que aliado aos conteúdos que veiculam informações falsas, pode enganar facilmente o cidadão. “Algo que se parece com informação neutra pode, de facto, ser patrocinado por uma entidade de um país diferente que pretenda influenciar as eleições. É por isso que as pessoas devem saber quem está por detrás do conteúdo de cada anúncio político”, defende.

A questão da utilização dos dados foi muito debatida e apenas decidida no último trílogo. “Nós estabelecemos metas e, às vezes, linhas vermelhas”, mas, no final, é preciso “pôr os pés no chão e dizer é melhor aprovar este regulamento, mesmo sabendo que ele não é tão perfeito quanto desejaríamos que fosse, do que não aprovar nada ou não ter nada”, explica Maria Manuel Leitão Marques.

Neste regulamento, foi preciso atingir um equilíbrio entre a proteção dos cidadãos e a liberdade de informação nas redes sociais. “Se o passo foi demasiado curto, vamos ver”, admite a eurodeputada, que relembra que “há algumas regras nas eleições, mas não tão exigentes como estas”. A insuficiência deste regulamento pode estar na questão de serem necessárias regras mais rígidas para impedir a interferência estrangeira ou o uso de todos os dados pessoais, independentemente do consentimento.

Sobre o papel desempenhado por associações como a MyPolis para ajudar os cidadãos a reconhecer a publicidade política, Maria Manuel Leitão Marques explica que este regulamento é necessário até para quem tem maior literacia política. “Se a minha cultura política é maior, eu talvez desconfie, mas nós não podemos legislar apenas para uma pequena elite” e agora “com este regulamento passam a conseguir distinguir, porque ela [a publicidade política] está etiquetada”.

O objetivo “é serem críticos”, afirma Cristian, que acredita que os jovens que beneficiam dos recursos da associação estão mais capacitados para questionar e criar uma opinião crítica sobre os assuntos democráticos. Até mesmo nos alunos mais velhos é possível desconstruir ideias e aumentar a consciência política. Ilpo acrescenta que, no ensino secundário, é muito comum os jovens terem “visões políticas muito mais construídas do que as crianças de primeiro ciclo que ainda são muito sinceras e transparentes”, por isso, “o objetivo é mesmo desconstruir isso e tentar retomar uma atitude crítica perante a realidade que observam”.

É com esta vontade de levar o espírito crítico ao país e festejar a democracia, que a MyPolis se aliou à Comissão Comemorativa 50 Anos 25 de Abril para proporcionar 50 Assembleias participativas jovens em 40 territórios. Nestas assembleias, os jovens estarão cara a cara com os seus representantes autárquicos para discutir propostas para o município, uma forma de mostrar que a democracia também cresce e se celebra num diálogo entre gerações.