48 anos Expresso

Filipe Melo: “Havia a tradição da banda desenhada nos jornais e já não há. E a poesia também tem pouco espaço”

Perdeu-se um jornalista 'sem vocação', ganhou-se um músico que foi outrora uma 'jovem promessa' nas páginas do jornal. E o Expresso esteve sempre na sua casa e na sua vida, desde 'pequenininho'. Se um dia o jornal fosse seu, nem que fosse por um dia, mudaria pouca coisa, mas traria poesia e banda desenhada. A propósito do 48.º aniversário do Expresso, em 6 de janeiro, escutámos o que pensam várias personalidades, da cultura ao desporto, da política à ciência, sobre o jornal, mas igualmente como a pandemia veio alterar o seu último ano e o que desejam do novo

Qual é a memória que tem do Expresso?
Cresci com o Expresso em casa. Até consigo lembrar-me de vários jornais que iam passando, mas um que esteve sempre lá foi Expresso, não é uma mentira, não estou a dizer isto por estar a falar para o Expresso. É uma parte das nossas vidas, parte da nossa educação cultural.

E o que é que, nesse tempo, lhe interessava no jornal? Já era a cultura?
Aqui há uns valentes 10 anos saiu um artigo no Expresso sobre mim. Na altura, era tipo 'boa!, agora faço parte cultura do nosso pais!' [risos] - e um tipo ficava assim todo contente. Era uma coisa que escolhia jovens promessas. Agora já não sou uma jovem promessa, sou um velho barbudo, mas continuo a ser mais novo do que o Expresso. Portanto, o Expresso já anda aí há uns anos. E sempre esteve por lá. Faz parte da minha vida desde pequenininho. Mais do que um impulso para a minha carreira, que obviamente foi, aquele artigo foi uma espécie de um miminho que nos dão, porque cada coisa que uma pessoa faz, uma peça de teatro, uma obra musical, um espetáculo daqueles que muitas vezes não têm público, de repente, quando [um crítico] vê essas coisas atentamente vai levar a que outras o percebam. E isso obviamente é um estímulo muito grande, uma motivação, uma força. Sempre estive muito atento à crítica de música no Expresso, que mais ou menos ditava o que uma pessoa deveria ouvir. E a verdade é que tem sido sempre assim, sempre que acontece alguma coisa significativa, o Expresso é o sítio onde uma pessoa pode ver o que está a acontecer.

Hoje tem um sem-número de ofícios e de projetos, na música, no cinema, na banda-desenhada, o que lhe 'rouba', certamente, algum tempo. Ainda consome informação em papel, demoradamente, ou já só seleciona online aquilo que pretende ler?
Diria que a nível da cultura, a nível de cinema e música, que são áreas que me interessam muito, consulto a Revista. Gosto de ler aquilo. Mas também a única aplicação de informação que assino no telefone é o Expresso, porque gosto de ir recebendo aquelas notificações. Não tenho notificações para mais nada. Aliás, acho que é um segredo que têm dito que ajuda muito à sanidade mental: não ter notificações no telefone. Mas eu recebo as do Expresso e é um bocadinho assim uma forma de uma pessoa ir percebendo o que se passa neste planeta sem ter a sensação que está a ser manipulado ou aldrabado, que é uma coisa que ultimamente se tem falado muito, mas que, ali, fico tranquilo.

Se se visse a dirigir uma publicação como o Expresso, o que é que gostaria de ler mais, o que é que gostaria de ver mais aprofundado e não vê?
É uma boa pergunta. No outro dia estava a pensar que havia a tradição da banda desenhada nos jornais e já não há. E estava a pensar que a poesia tem pouco espaço. Acabou por ser um estilo literário que já só se encontra nos livros. De alguma forma não era má ideia ter algum tipo de conteúdo poético, nem que fosse numa secção própria. Foi uma resposta péssima?! [Risos]

Vivemos um tempo conturbado, socialmente, economicamente, e o setor da Cultura é muito afetado. Tem certamente amigos, músicos, realizadores, técnicos, que passam muitas dificuldades. O jornalismo está a cumprir devidamente o seu papel de informar, escrutinar e denunciar?
Antes de ter uma carreira na música estudava jornalismo. E não tinha vocação. Quando uma pessoa se dedica ao jornalismo, a informar as pessoas, a incentivar o pensamento livre, tem de ter uma vocação. E, de facto, é um prazer quando se vê uma publicação que estimula esse tipo de investigação. É raro. Em relação à cultura, e em especial nestes tempos, tem havido uma gigante negligência do Estado em relação às necessidades particulares dos artistas e dos técnicos. É sempre um bocado 'eles safam-se'. E obviamente que já quando as coisas estavam normais, os artistas e os jornalistas culturais tinham uma relação muito próxima. É uma relação de co-dependência que tem de ser baseada na paixão dos jornalistas pela arte e dos artistas por essa relação de cumplicidade que têm com o público. Conclusão: acho que os jornalistas, alguns!, têm feito um trabalho extraordinário a acompanhar os artistas nesta luta que tem sido tentar ter alguma dignidade e alguma capacidade de sobreviver.

Apesar da pandemia, 2020 acabou por ser um ano feliz para o Filipe, com a publicação e o sucesso todo que teve o livro "Balada para Sophie"...
Foi um ano muito confuso. Tenho impressão que uma coisa que afetou toda a gente foi é um bocadinho a falta de objetivos ou falta de desígnio ou de rumo, que era uma coisa que nunca foi um problema para mim e, agora, é um bocado. Qualquer coisa de boa que uma pessoa tenha agora, agarra-a. Essencialmente tenho tentado pensar um dia de cada vez. É isso. Sobre o livro: quando uma pessoa lança qualquer coisa, há obviamente uma grande alegria, mas, ao mesmo tempo, há assim aquela coisa de 'já está e agora o que é que vou fazer?'; não sei o que é que vou fazer agora. Quando se está tanto tempo a trabalhar numa coisa coisa e, de repente, essa coisa já não dá para mudar, já não dá para fazer nada... Isto para dizer que: em boa verdade, dedico-me a várias coisas. Tenho a música como atividade principal, mas depois tenho uma paixão enorme pelo cinema e pela banda-desenhada. Calhou muito bem ter lançado o livro nesta altura [de pandemia], porque na música não há concertos, no cinema a grande maioria das rodagens que conheço foram adiadas, canceladas ou as pessoas têm que fazer testes dia sim, dia não. Na banda-desenhada tenho a enorme vantagem de os bonecos não terem de fazer testes à covid-19, portanto estão sempre disponíveis, posso juntar "multidões", é facílimo. E depois, também, há aquela grande vantagem que é: as pessoas podem ler nas suas casas, não têm que se deslocar ao cinema ou ao teatro. Portanto, a banda-desenhada é o mais seguro de todos os trabalhos em que me envolvo. Foi uma grande felicidade lançar o livro este ano.

Que projetos tem para 2021, acreditando que haverá uma melhoria? Voltar ao cinema e às curtas-metragens, por exemplo?
Ora bem, o meu plano para 2021 é... fazer exatamente aquilo que tenho feito ao longo dos anos que é música, cinema e banda-desenhada. [Risos] Ainda não sei o que raio vai acontecer, mas alguma coisa há-de acontecer. E se não surgir a oportunidade, eu vou criá-la.