A formação do Governo está por dias, o seu líder já está inclusivamente indigitado, e muito se especula sobre as medidas que este Executivo, com base numa maioria relativa no Parlamento, tomará nos primeiros tempos. A ideia de que há dinheiro para distribuir pela AD (ideia que até já terá motivado o PS a estar aberto a compromissos iniciais) sedimenta-se, por entre várias reivindicações salariais de várias classes profissionais e diminuição de impostos.
O governador do Banco de Portugal e antigo ministro das Finanças Mário Centeno pôs, esta sexta-feira, água na fervura, frisando que o “caminho é muito estreito” para o País em termos orçamentais. “Há três países com saldos positivos: Portugal, Chipre, e Irlanda. Portugal não deveria perder esse estatuto”, disse na conferência de imprensa que se seguiu à apresentação do Boletim Económico de março, com previsões mais otimistas do que o anterior.
Mais do que pôr água na fervura, foi um balde de água fria às pretensas intenções do próximo governo. São alertas que não destoam da mensagem geral que Centeno tem vindo a veicular nos últimos meses sobre estabilidade orçamental. Há, porém, um fator que se aproxima no horizonte: o regresso das regras do Pacto de Estabilidade e Crescimento (PEC) em 2025, depois de quatro anos suspensas devido à pandemia da covid-19.
Com algumas alterações que tornam o Pacto mais flexível, continuam ainda assim os tetos máximos de 3% para o défice e de 60% para o rácio de dívida pública em relação ao Produto Interno Bruto (PIB). “Portugal viveu 80% dos dias, entre 2000 e 2017, em procedimento de défice excessivo. Não queremos lá voltar”, frisou Centeno. “Se não acautelarmos a margem financeira que nos permita gerir as próximas crises o país corre os mesmíssimos riscos que correu no passado", afirmou Centeno.
O governador não se quis pronunciar diretamente sobre um eventual Orçamento retificativo nem particularizou a quem se destinariam os seus alertas.
Mas Centeno recordou que o Banco de Portugal irá avaliar as medidas orçamentais no âmbito das projeções bianuais que começou a realizar em 2023 e diz que é “absolutamente natural que a instituição com capacidade legislativa em Portugal legisle, é algo que devemos saudar e que deve ser feito no âmbito da democracia. Mas do ponto de vista financeiro, é necessário preservar a estabilidade que temos hoje. A margem de que muito se fala é a margem de que o país precisa para precaver o futuro”. Se os decisores entenderem o contrário, “avaliaremos depois”.
Sobre uma eventual nova descida dos impostos, Centeno reconhece que “com menos impostos viveríamos melhor, mas a dúvida é o que é que se fará para financiar” o investimento público e as contratações na Função Pública. “O país está a assumir um conjunto de compromissos na área do investimento público que vão ter de ser pagos. Não podemos perder a noção das responsabilidades que vamos assumir”, disse. Medidas sim, mas “desde que não se perturbe o equilíbrio e não se crie pressões sobre a procura”.
Equilíbrio orçamental é o “coito” de Portugal
Numa curiosa metáfora que recupera uma característica das brincadeiras infantis, o espaço em que se está imune de perder o jogo, Centeno descreveu o equilíbrio orçamental como “o ‘coito’ do processo orçamental europeu, que é onde nós nos podemos resguardar”.
Não manter essa salvaguarda torna o País “mais exposto a desvios face à regra da despesa” do PEC, e pequenos desvios na ordem dos 0,3 pontos percentuais do PIB podem significar já exposição a infrações junto de Bruxelas.
“A situação atual de Portugal é um desvio significativo da despesa em 2024, que ainda não conta. Em 2025 e 2026, ainda sem ter a avaliação completa, mas a partir de tudo o que hoje está legislado e da dinâmica da despesa pública face à evolução do PIB nominal, a margem adicional deverá ser essencialmente nula”, descreveu.
Centeno vincou que “o caminho é muito estreito” para quem tomar decisões políticas no futuro; muito também, lembrou o governador, devido a decisões orçamentais anteriores cujos efeitos se arrastam para os anos seguintes, como a redução de IRS inscrita na lei orçamental para 2024, superior a 500 milhões de euros.
Para ilustrar a necessidade de se compensar este montante, por momentos Mário Centeno regressou à pele de titular da pasta das Finanças: se os cortes no Imposto sobre os Produtos Petrolíferos (ISP), que representam uma despesa de perto de 440 milhões de euros, “forem revistos, cria-se uma margem adicional. Se isso não for feito, se se mantiver aquela medida discricionária, não há criação de nenhuma margem adicional do lado da despesa”.