Está preocupado com o estado da comunicação social?
Sim, aqui e em todo o mundo é uma preocupação central. No âmbito da presidência portuguesa da União Europeia organizámos uma conferência sobre o futuro do jornalismo, e algumas das questões centrais prendem-se com o combate à desinformação, políticas de literacia mediática e qual é o modelo de negócio dos media, que é a questão de um milhão de dólares, todos os desafios que têm a ver com as plataformas que desviam a publicidade, questões como a pirataria, como a crise do papel, a substituição pelo digital. O futuro do jornalismo é uma questão absolutamente essencial para as democracias. Antigamente quando falávamos de órgãos de comunicação social e de jornalismo era uma realidade sobreposta, comum, hoje já não é necessariamente a mesma coisa. Há jornalismo que começa a ser feito para lá dos jornais, com outros modelos e há mesmo a nível europeu uma série de iniciativas que têm a ver com o Digital Services Act [Lei dos Serviços Digitais], todas as agendas de combate à desinformação, nós em Portugal estamos muito alinhados com o que está a ser feito. O ministério da Cultura tem uma iniciativa conjunta com o da Educação para ter já a partir de setembro nas escolas um projeto que se chama LEME - Literacia e Educação para os Media, com o qual colaboram entidades como o Cenjor e o Sindicato dos Jornalistas mas também algumas empresas de comunicação. No fundo a ideia é dotar as escolas de conteúdos que sensibilizem os alunos para a importância do jornalismo e de combater a desinformação, é algo que está nas disciplinas de cidadania e que tem de se autonomizar.
Já defendeu a criação de uma disciplina específica com esses conteúdos.
Acho que tem de haver, é mais fundamental para existência de cidadãos informados no futuro que haja uma disciplina sobre literacia mediática. Isto tem de ser acompanhado em todos os níveis de ensino e até mais tarde com as pessoas mais velhas, isto tem de estar presente na vida das pessoas. Se não formos bem informados e não conseguirmos desmontar os mecanismos de desinformação tornamo-nos eleitores desinformados e isso é perigosíssimo para as democracias. Como é que se faz isto? Nós apostamos na literacia mediática em projetos como o LEME, para todas as escolas. Tem havido alguns projetos mas isto é uma coisa estruturada que está disponível nas escolas e a que todos os professores poderão aceder, que vai desde livros, conteúdos, filmes, modos de discutir o jornalismo na escola e a importância fundamental do jornalismo e do combate à desinformação. A outro nível propus também criar um grupo de trabalho para iniciar o levantamento do que deve ser revisto na lei de Imprensa. Mais do que tudo, onde temos de atuar é na defesa do jornalismo e da atividade jornalística. Todos os mecanismos de fact checking que têm surgido são interessantes mas essa atividade existe há muitos anos, chama-se jornalismo, o que precisamos de valorizar é o jornalismo.
Isso tem uma crítica implícita de que esse trabalho não tem sido feito pelos meios de comunicação social?
A crítica não é aos jornalistas, nem sequer é uma crítica, é uma constatação de que se faz jornalismo com cada vez mais dificuldades, as condições são cada vez mais difíceis precisamente porque o financiamento é escasso.
É preciso esclarecer exatamente o que é jornalismo e o que não é e quem é jornalista e quem não é?
Há uma parte que é claramente da competência dos governos que tem a ver com iniciativas como a literacia mediática. É nossa competência também as leis, do governo e do Parlamento, a discussão que vier a haver sobre a Lei de Imprensa terá de ser feita no âmbito do Parlamento, a nós cabe-nos a iniciativa de fazer o levantamento do que deve ser discutido. Mas há outra parte, que é o facto de não caber aos governos substituírem-se aos jornalistas, que tem a ver precisamente com as condições de profissionalização do jornalismo. Isto exige da parte dos jornalistas que eles próprios façam essa regulação. Uma das coisas essenciais da Lei de Imprensa, e que tem vindo a levantar problemas, é no fundo a questão de definir o que é a imprensa hoje face a todo o desenvolvimento digital. Recordo as questões levantadas recentemente sobre órgãos registados na ERC e que de facto não eram jornalísticos. Por outro lado o registo não é necessariamente uma má decisão na medida em que também é uma forma de regulação. Há uma série de questões que têm de ser discutidas por todos. Definir o que é um órgão jornalístico e o que não é leva-nos a entrar num território de gelo muito fino no qual seguramente o governo não quer entrar. Os maus políticos fazem muito mal aos bons políticos e os maus jornalistas fazem muito mal aos bons jornalistas. Este é um bom momento para discutir isso no âmbito da discussão de uma Lei de Imprensa para a qual todos devem ser convocados.
Na sequência da conferência sobre financiamento dos media, em dezembro de 2019, houve alguma pressão do sector para que houvesse algum apoio do Estado e ficou a expectativa de que o governo estava a preparar um pacote de medidas. Avançou a compra antecipada de publicidade mas esperava-se mais. Esse pacote de medidas não vai avançar?
As empresas de comunicação social têm sido apoiadas, durante a pandemia, da mesma forma que foram apoiadas as empresas de outros sectores. Também temos a nível europeu as inúmeros linhas de apoio que vêm da Europa às quais as empresas de comunicação social também se podem candidatar, financiamento à inovação, para equipamentos tecnológicos, digitalização, formação, qualificação profissional, são apoios transversais às várias empresas a que as de comunicação social também poderão aceder. Por outro lado, o esforço do Governo está centrado sobretudo em rever a Lei de Imprensa, pôr essa discussão em cima da mesa, e avançar com o projeto de literacia mediática, valorizar a ideia do jornalismo, distinguindo as empresas de comunicação social e os jornalistas, porque embora a maior parte dos jornalistas trabalhem em empresas de comunicação social, o que temos de valorizar é a profissão, o que traz desafios novos. Neste momento, até por causa da separação de poderes, convém que o Governo vá com algum distanciamento em relação à atividade jornalística e às empresas do sector. Há muitos incentivos, há preocupações, as questões da imprensa regional e local estão no centro das nossas preocupações, tivemos a compra antecipada de publicidade, que teve um efeito que as próprias associações do sector reconheceram como positivo, é claro que sendo uma medida inédita teve desafios burocráticos enormes mas passado todo este tempo o sector reconhece que foi uma medida muito importante e em particular serviu para valorizar o papel da imprensa local e regional, pois 25% dessa publicidade foi para eles, permitiu mapear o território. É um sector em profunda transformação. Há menos de 10 anos foi extinto o gabinete da comunicação social, neste momento não temos um instrumento para exercer políticas de apoio à comunicação social como temos na área audiovisual o Instituto de Cinema e Audiovisual (ICA) porque na altura havia a ideia de que tinha de haver uma separação e que os governos não tinham nada a ver com a comunicação social. O quadro mudou, hoje já se diz que é preciso fazer qualquer coisa para defender a comunicação social. Uma coisa que será interessante no futuro é pensar em criar um gabinete, uma estrutura que possa ser mais ágil no apoio à comunicação social.
O governo está a estudar mais algumas medidas?
Ainda estão a ser estudadas.
É previsível que haja alguma medida inscrita no próximo Orçamento do Estado?
Essas medidas têm estado em cima da mesa e são discutidas dentro do Governo mas estamos numa fase de enorme requisição do Governo para acudir a situações em risco de colapso. Não posso por isso dizer que estejam na primeira linha. Mas é uma preocupação, está sempre na preocupação do Governo que o ecossistema mediático esteja equilibrado, é fundamental que haja empresas de comunicação social saudáveis.
Sendo que é um sector com dificuldades, surpreende-o que haja empresários de outros sectores, nomeadamente da indústria, que estejam a investir em grupos de media ou que estejam a ser lançados projetos jornalísticos?
Não me surpreende. Extravasando do que são só as áreas de jornalismo, se há um sector com potencial de crescimento brutal dentro da área das indústrias criativas, é o audiovisual, sobretudo se pensarmos no audiovisual na sua dimensão mais ampla que vai até aos jogos. Em Espanha foi lançado um hub criativo que vai desde o cinema ao gaming em que o ministério da Economia e da Cultura deram um boom muito significativo através de incentivos. Mas Espanha tem, de facto, uma indústria. Se há uma área onde há uma lógica possível de investimento é o audiovisual no sentido amplo e nós estamos a trabalhar nisso também.