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A polémica Carta de Direitos Humanos na Era Digital: "artigo 6º deve ser alterado", diz Nuno Artur Silva

É preciso aprofundar o polémico artigo 6º da Carta Portuguesa de Direitos Humanos na Era digital que estabelece o "direito à proteção contra a desinformação" e isso deverá levar à sua alteração, disse ao Expresso o secretário de Estado do Cinema, Audiovisual e Media no âmbito de uma entrevista publicada na última edição do semanário - e cuja versão integral agora se publica. Na quinta-feira o Presidente da República pediu ao Tribunal Constitucional a fiscalização sucessiva da constitucionalidade do mesmo artigo.

Nuno Artur Silva foi secretário de Estado do Cinema, Audiovisual e Media
José Fernandes

Na Carta Portuguesa de Direitos Humanos na Era Digital há um artigo, o 6º, que dispõe sobre o "direito à proteção contra a desinformação" que está a gerar alguma polémica. Há mesmo dúvidas quanto à sua constitucionalidade. Compreende essas dúvidas?
A Carta dos Direitos Humanos na Era Digital está em linha com o Digital Services Act europeu, foi aprovada e promulgada. Há mérito na tentativa de regular território que até aqui não estava regulado, o que não podemos fazer é substituir uma desregulação por qualquer coisa que abra caminho a uma regulação arbitrária ou mesmo dar o poder de decidir o que é ou não é narrativa válida. Isso é que é extremamente perigoso e carece de grande aprofundamento.

Na alínea 6 desse artigo diz-se que "o Estado apoia a criação de estruturas de verificação de factos por órgãos de comunicação social devidamente registados e incentiva a atribuição de selos de qualidade por entidades fidedignas dotadas do estatuto de utilidade pública”. Isto não abre caminho a uma eventual intervenção arbitrária?
Não creio que isso vá acontecer porque vai haver uma regulação que certamente será muito aprofundada e detalhada, não creio que isso esteja em perigo.

A crítica vai no sentido de que com toda a regulação e a arquitetura jurídica que já existe, já há mecanismos para aferir o que é informação e o que é desinformação. Isto seria criar um ruído desnecessário que se não for acautelado inicialmente pode um dia destes gerar situações complexas.
Acho que esse artigo necessita de muito aprofundamento.

Então poderá ainda ser alterado?
Seguramente. Deverá ser alterado, creio que é isso que vai acontecer, não acredito que fique como está, carece mesmo de desenvolvimento. É uma questão muito sensível, não podemos abrir nenhuma porta a que haja qualquer tipo de controlo do que quer que seja, das tais narrativas, por organismos que não estejam absolutamente de acordo com a Constituição. O que acho correto fazer é acompanhar o que vai sendo feito na Europa, isto está a ser muito discutido a nível europeu, há muito debate de ideias, temos de fazer parte deste debate. É uma questão muito interessante porque estamos a falar de plataformas digitais privadas onde se passam coisas que são da esfera pública. Como a questão de o Facebook ou o Twitter terem cortado a conta de Donald Trump, estamos a falar da capacidade que as empresas privadas têm de definir o que se passa na esfera pública apesar de ser um ambiente privado. Isto traz desafios extraordinários do ponto de vista da regulação, da legislação, o que o governo diz é que qualquer coisa que se faça tem de ter como absolutamente sagrado o direito à liberdade de expressão, a liberdade de expressão não é negociável e o melhor mecanismo que temos de credibilizar o que é verdade e o que é mentira é ou o jornalismo ou, a outro nível, a ciência. Não vamos pôr-nos a criar mais nada além deste quadro em que trabalhamos.

As redes sociais fizeram bem em suspender as contas de Trump?
Na circunstância fizeram bem, a questão é o que se faz com esse precedente. A realidade é complexa e não há respostas simples. A questão é que isto não constitua uma precedente para que qualquer empresa privada decida quando quer cortar a conta deste ou daquele. As arbitrariedades não podem tornar-se regra.

Como é que se estabelece que a circunstância é correta numa vez e não é na outra? Para o governo é claro que se tem de criar alguma ordem nesta espécie de selva mediática?
É claro porque as democracias em que vamos viver no futuro dependem da informação que os cidadãos vão ter, se essa informação é manipulável estamos a pôr em risco a democracia. Obviamente tem de haver um sistema de regulação. A lei que existe já vai balizando, a liberdade de expressão não é negociável mas se eu com o que digo fizer um incitamento ao ódio ou um julgamento racista e isso tiver consequências na vida de outras pessoas, posso ser punido legalmente por isso e é bom que assim seja. Temos de manter os nossos pilares democráticos mas ao mesmo tempo não cedermos perante aquilo que ameaça a própria liberdade de expressão. Das redes sociais aquilo que se espera é que possam ser enquadradas pelas leis que protegem os cidadãos e o direito ao bom nome e à imagem mas tem de se ter muito cuidado com a criação de novos reguladores porque historicamente já vimos onde isso vai levar. É muito importante que os órgãos de comunicação social se tornem o que foram no início, quando leio um jornal não sou apenas leitor do jornal, faço parte de uma comunidade de pessoas que lê o mesmo jornal, a criação de comunidades e a promoção de uma diversidade com pontos comuns que nos evite chegar ao ponto a que chegou a sociedade americana, à crispação, que é um bocadinho fruto das redes sociais, é no fundo o populismo, reduzir a realidade a um aspeto. Cabe aos órgãos de comunicação social tornarem-se instrumentos de encontro social e de promoção das diferenças, o facto de alguns serem privados não quer dizer que não prestem serviço público. E serviço público é tornarem-se plurais e poderem ter posicionamentos ideológicos sem contribuírem para a divisão da sociedade.

As redes sociais deviam ser mais interventivas nos conteúdos, deve haver maior responsabilização destas empresas?
Sim, não podem lavar as mãos e dizer que só são a rede, que não têm responsabilidade pelos conteúdos. Claro que têm responsabilidade, aquilo passa-se na casa deles. Há um caminho que está a ser feito a nível europeu, não é Portugal que vai impor aos chamados GAFA [Google, Amazon, Facebook e Apple].

A Europa tem feito pouco a esse nível?
Está a ser feito muito por iniciativa dos EUA, a ideia de os lucros serem taxados nos países onde a atividade é exercida e não tanto no país escolhido para declarar os impostos é um passo gigante. Depois há a outro nível a transposição da diretiva que obriga a investir nos países onde emitem e não apenas a ter obrigações nos países onde estão sedeados, depois há questões como a que há-de ser negociada da transposição dos direitos de autor e que vão regular mais a utilização de conteúdos, há muita coisa que está a ser feita mas é um trabalho lento e moroso porque a tecnologia evolui mais depressa do que a produção legal.