Economia

Privados querem ajudar a recuperar consultas e cirurgias

Projetos Expresso. Empresas. Luz Saúde, Lusíadas Saúde e CUF (entre outros) estiveram no CEO Health Forum, onde apelaram à urgência de cuidar dos doentes não covid

Tarde e noite a discutir o futuro: Salvador de Mello, Isabel Vaz, Luís Goes Pinheiro e Vasco Antunes Pereira foram os convidados do painel da noite, com a presença remota de Germano de Sousa
José Fernandes

O futuro da saúde passa por teleconsultas, aplicações no telemóvel que mostram o ritmo cardíaco ou robots que medem a temperatura, que desinfectam quartos em 10 minutos e até que dizem os números do bingo para servir de companhia a quem está mais isolado, seja por causa do covid-19 ou por outro motivo ou doença. Mas, agora, o futuro imediato tem de ser outro: dar prioridade às consultas, tratamentos e/ou cirurgias que foram adiadas ou canceladas por causa da quarentena e porque os profissionais do sector estavam a dar resposta à pandemia. Um número que pode chegar aos 12,5 milhões no final do ano, segundo um estudo da Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares (APAH) e da Ordem dos Médicos.

“Dou os meus parabéns ao Serviço Nacional de Saúde (SNS) mas, neste momento, estamos noutra fase da pandemia e é preciso responder às outras doenças”, diz a CEO da Luz Saúde, Isabel Vaz. De acordo com a gestora, há vários casos que precisam de ser vigiados, como a hipertensão ou o pé diabético, e há diagnósticos que têm de ser feitos antecipadamente, por exemplo, de problemas cardíacos e vasculares e também oncológicos, como referiu o CEO da Mello Saúde (Hospitais e clínicas da CUF), Salvador de Mello. “Na área oncológica foi dramático o que se passou no diagnóstico. Na rede CUF diagnosticamos, habitualmente, 80 cancros por semana e na fase mais aguda da pandemia passámos para 20 casos por semana. É isso que é preciso recuperar”.

É que, repara Isabel Vaz, “o sistema mostra-se robusto se, apesar de ter uma doença que rouba 25% a 30% da capacidade dos hospitais, consegue não faltar a todas as outras doenças que, relembro, continuam a matar muito mais que o covid, como as doenças cardiovasculares ou oncológicas”.

Ora, é, precisamente, para garantir que o sistema é robusto e para recuperar todas estas consultas, tratamentos e cirurgias perdidas ou adiadas que os grupos de saúde privados dizem estar 100% disponíveis para ajudar. Porque, “pensar o sistema como um todo não é só o SNS”, repara o professor da AESE Business School, Rui Mesquita. “Há disponibilidade para dar apoio ao SNS e há instrumentos vigentes que permitem recuperar essas listas de espera”, diz o CEO da Lusíadas Saúde, Vasco Antunes Pereira. Uma disponibilidade que também já existia quando estalou a pandemia em março.

“Desde o primeiro minuto que estivemos disponíveis para contribuir e tratar o que fosse necessário de doentes covid e não covid, mas o SNS preparou-se muitíssimo para tratar o covid e não achou oportuno recorrer aos privados. Só que, hoje, há necessidades de uma longa fatia da população que ficou sem diagnóstico, sem consultas e sem cirurgias e é preciso atender a essas pessoas”, nota Salvador de Mello, sem qualquer desprimor pelo bom trabalho que o SNS fez no pico da pandemia e das melhorias que fez em poucos meses. De acordo com o presidente dos Serviços Partilhados do Ministério da Saúde (SPMS), Luís Goes Pinheiro, o SNS está agora muito mais bem preparado do que o que estava em março e isso é visível na linha Saúde 24 que, no início da pandemia, revelou graves fragilidades. Na segunda-feira, 28 de setembro, a linha telefónica atendeu 15 mil chamadas, atingindo um recorde de triagens efectuadas num só dia. “Posso assegurar que o SNS 24 que tínhamos em março não é o que temos agora”, repara.

A importância dos grupos privados

De facto, segundo Paulo Nunes de Abreu, do Hospital do Futuro, “o nosso grande inimigo não é o virus é a falta de organização”. É, por isso, que de acordo com Germano de Sousa, administrador dos laboratórios de análises Germano de Sousa, para ajudar nesta recuperação dos tratamentos perdidos, ao mesmo tempo que se prepara o inverno e a possibilidade de agravamento do covid, “todos são essenciais, público e privado”. “Em 2018, gastou-se em saúde €17,3 mil milhões dos quais €9,7 mil milhões foi no SNS, o resto foi pago por nós cidadãos, além dos impostos que pagamos”, diz. A isto acresce que, diz Salvador de Mello, “hoje, mais de quatro milhões de pessoas têm acesso à saúde privada”, ora, “imagine-se se essas quatro milhões entrassem de rompante no SNS”, repara ainda Germano de Sousa.

Para este gestor, a prova de que os grupos privados de saúde têm tido um papel fundamental na pandemia está precisamente na actividade que desempenha. E exemplifica: “Nos primeiros momentos da pandemia tivemos uma confusão total e absoluta e os laboratórios que estiveram melhor foram os convencionados [privados que têm acordos com várias entidades públicas]. Actualmente fazem-se 18 mil testes covid por dia, dos quais 42% são em laboratórios convencionados. Em abril, seriam 48% ou 49%. Fomos essenciais e continuamos a ser”.

Manter aposta na tecnologia

Neste momento, a prioridade são os doentes não covid, mas isso não pode ser desculpa para adiar a digitalização do sector ou, pior ainda, recuar nas inovações que foram introduzidas durante a pandemia e que tanto ajudaram a superá-la e a combatê-la (ver colunas ao lado). Porque, “se houve alguma coisa boa que esta pandemia trouxe foi que acelerou a adopção deste tipo de medidas que são uma arma muito importante de proximidade, não só numa lógica de pandemia”, diz Isabel Vaz. E, portanto, “o pior que pode acontecer é ter esta aceleração digital toda agora mas depois perdê-la no pós-covid”, alerta o presidente da Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares (APAH), Alexandre Lourenço.

Por exemplo, foi possível ter as receitas e medicamentos nas farmácias sem que os doentes precisassem de se descolar aos hospitais ou clínicas, conta o presidente da Associação Nacional de Farmácias (ANF), Paulo Cleto Duarte. E as teleconsultas cresceram muito. Só na rede CUF, no pico da pandemia, fizeram-se mil por dia. Claro que, agora, já se fazem menos, mas é uma inovação que veio para ficar, tal como o trabalho remoto e as reuniões por Zoom.

Aliás, para Ana Sofia Marta, responsável da área de Saúde e Administração Pública da Accenture em Portugal, a tecnologia é a melhor forma de dar resposta aos desafios que o sector já tinha e aos novos desafios resultantes da pandemia. Até para resolver a falta de profissionais que, segundo Ana Sofia Marta, citando dados da Organização Mundial de Saúde (OMS), poderá atingir os 15 milhões em 2030. Não se trata de substituir os profissionais por máquinas ou robots, mas sim usar essas inovações para garantir funções simples como desinfectar quartos ou medir temperaturas, deixando assim os profissionais livres para se dedicaram à “personalização” dos cuidados de saúde que é agora exigida pelos doentes. Ainda assim, e apesar de louvar todas estas inovações, Alexandre Lourenço lembra: “É preocupante ter tanta coisa digitalizada e ainda haver falta de estruturas de saneamento básico”.

6 grandes transformações com a covid-19

A pandemia acelerou as mudanças que estavam previstas e planeadas para o sector, mas também trouxe novos desafios

1. Inovação nos modelos de gestão
A saúde é um dos sectores que mais vive da proximidade, mas viu-se obrigada a promover a distância entre utentes e profissionais. “A distância passou a ser uma necessidade em vez de uma preferência”, diz a Accenture. Perante esta realidade, as administrações estão a repensar os modelos de negócio, sendo que uma das formas de promover essa distância é através da digitalização e da inteligência artificial. Será preciso, no entanto, colmatar as limitações digitais que ainda existem nos profissionais e promover a sua relação com robôs e máquinas.

2, Amplificação do digital
A digitalização já tinha chegado ao sector da saúde, mas as inovações tecnológicas estavam a surgir de forma faseada e ponderada. Contudo, com a covid-19, tudo isso foi acelerado. “As pessoas apoiavam-se na tecnologia, mas com a pandemia ela passou a ser uma espécie de salva-vidas. Tornou-se necessário para receber cuidados de saúde, para aceder a informação sobre o vírus. [...] A covid não travou a inovação digital, amplificou-a para níveis históricos”, pode ler-se num estudo da Accenture.

3. Afirmação dos robôs
O objetivo é dar apoio aos serviços, à gestão e aos profissionais do sector, aliviando-os e permitindo que se foquem noutras funções. Há já vários exemplos de robôs a funcionar em hospitais em todo o mundo, e com a pandemia introduziram-se essas máquinas para ajudar a cumprir as normas de segurança e o distanciamento social.

4. Diagnóstico e prevenção digital
Os robôs e as consultas não são as únicas inovações tecnológicas na saúde. Há já várias aplicações criadas para ajudar a combater a propagação da covid-19 e também outras doenças.

5. Suprir a falta de pessoal
A covid-19 veio expor as fragilidades do sector, como a falta de pessoal. Por exemplo, nos EUA, ficou demonstrado que são necessários 20 vezes mais enfermeiros do que os que havia no ano passado. Para colmatar esta falta de pessoal, as administrações estão a contar com a tecnologia e a inteligência artificial (robôs).

6. Ventiladores produzidos fora do sector
Outra das fragilidades que a pandemia expôs foi a falta de ventiladores, equipamentos de proteção individual e camas. Mas, ao contrário da falta de pessoal, estas necessidades foram superadas rapidamente. A produção aumentou, e as empresas de fora do sector também ajudaram, como foi o caso da fabricante de automóveis General Motors, que fez uma parceria com a Ventec Life Systems para produzir centenas de ventiladores. Em Portugal, o Citeve e o CEIIA foram um exemplo de organizações que reorientaram o seu trabalho para a produção de ventiladores, mas também de equipamentos de proteção individual, como viseiras.

Ana Sofia Marta (de costas na foto pequena) foi uma das convidadas da tarde em que estiveram remotamente Paulo Cleto Duarte, Alexandre Lourenço, Paulo Nunes de Abreu e Rui Mesquita. O arranque, por mensagem gravada, foi de Kaveh Safavi
José Fernandes

O Stevie do bingo e o cão-robô

Inteligência Artificial É cada vez mais usada e, no seguimento da quarentena e da proibição de visitas aos lares, percebeu-se que podia ajudar a combater o isolamento. Nos EUA e Reino Unido há um robô chamado Stevie que canta, conta histórias e anuncia os números do bingo. E em Singapura as autoridades usaram um cão-robô para patrulhar os espaços públicos e garantir o distanciamento social.

1000
teleconsultas por dia realizaram os hospitais e clínicas da rede CUF no pico da pandemia, diz o presidente da José de Mello Saúde, Salvador de Mello. Agora regista-se uma quebra significativa, mas este tipo de tecnologia veio para ficar. Num futuro próximo, uma em cada três consultas serão digitais, com recurso a vídeo. Antes da pandemia era de uma teleconsulta em cada 20.

O relógio da Apple mostra o ritmo cardíaco e o FitBit mostra os níveis de saturação de oxigénio. Além disso, já existem “algoritmos que identificam e classificam a gravidade da tosse e que alertam se houver dificuldades respiratórias”

Não humanos que ajudam humanos

Máquinas Os robôs têm estado a ser usados para aliviar os profissionais de saúde, realizando tarefas simples e permitindo que estes se foquem na proximidade com os doentes. Há já máquinas que entregam encomendas, cozinham as refeições dos doentes, desinfetam quartos, abrem os processos, medem a temperatura e fazem a triagem. Na Dinamarca, por exemplo, há robôs que demoram 10 minutos a desinfetar um quarto de hospital.

18
mil testes de covid por dia são atualmente realizados, dos quais 42% são feitos em laboratórios privados convencionados. Esta percentagem não é muito diferente da registada no pico da pandemia. Em abril representaria 48% ou 49%. Nos laboratórios da Germano Sousa, só esta segunda-feira, 28 de setembro, deram entrada 4200 testes, cujos resultados ficaram prontos em menos de um dia, explicou Germano Sousa, administrador da empresa.

Dois painéis, as melhores frases

“Não é possível continuar a adiar o controlo das suas doenças. As pessoas têm mesmo de recorrer aos cuidados de saúde, porque, se não, é uma tragédia monumental. Adiar mais uns quantos meses significa morrer”
Isabel Vaz
CEO da Luz Saúde

“Em março, o SNS 24 não estava dimensionado para a procura. Neste momento, temos uma linha com capacidade para dar resposta à procura, e asseguro que o SNS 24 que tínhamos em março não é o que temos agora”
Luís Goes Pinheiro
Presidente da SPMS

“O SNS não-covid tem de começar a funcionar, porque já não é uma novidade e há muito atraso nas listas de espera. É preciso encontrar o equilíbrio entre covid e não-covid, e isso tem de acontecer rapidamente”
Paulo Nunes de Abreu
Hospital do Futuro

“As nossas organizações têm de ser mais produtivas e têm de dar resposta à personalização [dos cuidados de saúde que os doentes estão a pedir], e a forma de dar resposta a isso é através da tecnologia”
Ana Sofia Marta
Responsável pela área de saúde da Accenture Portugal

Textos originalmente publicados no Expresso de 3 de outubro de 2020