A EDP avançou esta semana com uma ação administrativa contra o Estado, reclamando o direito a recuperar 717 milhões de euros relativos à conta de correção de hidraulicidade. A expressão técnica é essa, mas não se perca já, porque explicamos de seguida o que significa e como pode afetar os consumidores de eletricidade em Portugal. O valor desta divergência supera todos os outros diferendos da EDP com o Governo, incluindo a polémica Contribuição Extraordinária sobre o Sector Energético (CESE).
O potencial impacto para os consumidores não é imediato, mas a abertura deste novo foco de tensão acontece dias antes de a Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos (ERSE) aprovar as tarifas de eletricidade para 2020... e de o Governo aprovar o Orçamento do Estado para 2020, no qual se espera um sinal de redução do IVA da eletricidade.
1. O que está em causa nesta nova disputa?
São 717 milhões de euros. Em causa estão diferentes entendimentos entre a EDP e o Governo sobre quem tem direito ao saldo que foi apurado na extinção da “conta de correção de hidraulicidade” (CCH). Esta conta é um instrumento criado em 1989, quando a EDP ainda era 100% estatal, para minimizar o impacto das variações meteorológicas no custo da eletricidade em Portugal. Em anos mais secos o custo da energia elétrica tende a aumentar, porque recorremos mais a centrais termoelétricas alimentadas a carvão e gás natural, enquanto em anos mais húmidos acontece o contrário e os preços da energia são tendencialmente mais baixos, porque há maior disponibilidade das barragens para produzir. A conta de hidraulicidade era um instrumento alimentado com contribuições da EDP para amortizar o efeito dessas variações no custo da eletricidade.
2. Este instrumento operou até quando?
Há nove anos o Governo entendeu que dada a liberalização do mercado de energia já não se justificava a continuidade do mecanismo centralizado de amortização do impacto da hidraulicidade. O Decreto-Lei 110/2010, de 14 de outubro, determinou a extinção da conta de hidraulicidade em 2016, estipulando igualmente que entre 2010 e 2016 o saldo que a conta tinha em 2010 seria descontado ao sistema de forma progressiva, durante os sete anos. Segundo explicou ao Expresso fonte oficial da Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos (ERSE), não há quaisquer saldos remanescentes dessa conta (nem os balanços da EDP identificam quaisquer valores como ativo ou passivo relativamente à CCH). "Atualmente, não existe qualquer montante afeto à conta e, que seja do nosso conhecimento, nenhuma obrigação é reconhecida nos balanços das demonstrações financeiras do incumbente", explica a ERSE. Assim, em 2017 deixou de haver de facto a conta de hidraulicidade.
3. Qual a posição do Governo?
O Governo homologou em outubro a proposta que recebeu de um grupo de trabalho constituído em 2018 para fazer a avaliação final da conta de hidraulicidade. O relatório do grupo de trabalho concluiu que o saldo que existia na conta de hidraulicidade era um crédito do sistema elétrico (e, portanto, dos consumidores) e não da EDP. Segundo explicou a ERSE ao Expresso, os consumidores já beneficiaram, até 2017, da liquidação dos valores disponíveis na conta de hidraulicidade.
4. Qual a posição da EDP?
A EDP, que votou contra o relatório do grupo de trabalho, tem um entendimento distinto. Fonte da elétrica declarou ao Expresso que “em todas as operações de privatização a avaliação da EDP contemplou o saldo da CCH, montante que a empresa deveria receber”. Quando da votação do relatório do grupo de trabalho, a EDP já manifestara os seus argumentos. “Em nenhum diploma legal se menciona que a CCH pertence ao sistema elétrico, mas em diversos diplomas se menciona, pelo contrário, que a CCH está afeta à EDP por ter sido esta empresa que constituiu o saldo da CCH, satisfazendo o nível de referência”, argumentou a elétrica.
5. Qual o impacto desta disputa nos consumidores?
Com a ação administrativa que agora avança em tribunal, a EDP reclama o direito a recuperar 717 milhões de euros de saldos da conta de hidraulicidade. É uma incógnita a duração deste diferendo. “Inexistindo atualmente montantes afetos à CCH, a pretensão [da EDP] teria como efeito um aumento das tarifas de forma a recuperar o alegado direito”, confirma a ERSE. Pelas contas do Expresso o montante em causa corresponde a 12,5% dos custos anuais do sistema elétrico (que rondam os 5,7 mil milhões de euros). Ou seja, se, por hipótese, os tribunais vierem a dar razão à EDP, e se a opção fosse reembolsar a empresa de uma só vez, as tarifas de eletricidade dos portugueses poderiam ter de subir 12,5%. No entanto, o Governo e o regulador têm à sua disposição instrumentos para fracionar em vários anos alguns encargos de maior valor, de forma a diluir num período mais longo o impacto na conta da luz das famílias e empresas.