Se tivesse contado os passos em palco, Jorge Sequeira facilmente concluía que tinha dado uma volta inteira à cidade. Durante pouco mais de meia hora, o professor universitário e orador de palestras motivacionais teve tempo para tudo: contou meia-dúzia de histórias, arrancou umas quantas gargalhadas do público e levantou o Altice Arena por mais do que uma vez. No final, ainda pôs quatro mil contabilistas a fazer a famosa seta de Usain Bolt enquanto cantavam o maior hino dos Xutos & Pontapés: "O Homem do Leme".
No terceiro e último dia do VI Congresso dos Contabilistas Certificados, o secretário de Estado dos Assuntos Fiscais subiu ao palco para deixar um elogio à classe. “A vossa profissão é muito mais do que preencher os documentos das empresas. As contas certas são o que facilita a economia e faz o país avançar”, disse António Mendes com a bastonária, Paula Franco, a seu lado.
“Se 96% da atividade vai ser substituída a curto prazo por tecnologias ligadas à inteligência artificial, é necessário enfrentar esse desafio. A bastonária fez o que poucos fazem, encarou a questão, e o facto de estarmos aqui hoje a debater o futuro e a importância dos contabilistas é decisivo”, afirmou fazendo uma analogia com a Autoridade Tributária: “Lembram-se das rulotes onde se entregavam caixas com a papelada da contabilidade? Esse paradigma foi substituído pela digitalização. Mas temos 11 mil trabalhadores que todos os dias fazem o sistema funcionar.”
Ao Expresso, António Mendes mostrou-se otimista quanto ao futuro deste sector. “Os contabilistas são profissionais altamente qualificados, essenciais para assegurar que as contas das empresas estão devidamente reportadas. E essa operação é muito complexa porque não se limita ao preenchimento de obrigações declarativas. É também uma operação de qualificação, de entender bem a legislação fiscal e as normas contabilísticas. Enquanto houver impostos teremos sempre contabilistas", concluiu o secretário de Estado dos Assuntos Fiscais.
Usain Bolt
O terceiro dia de congresso teve um convidado de luxo. Horas depois de ter participado no "Governo Sombra", em direto do Altice Arena, Ricardo Araújo Pereira foi o cabeça de cartaz da sessão plenária “3 vidas, 3 mensagens”. Foi o último a subir ao palco, após o relato emotivo de Johnson Semedo, educador e ativista social com um passado de marginalidade e toxicodependência e com um percurso social ascendente nos últimos tempos. “Aos dez anos dormia com os meus amigos nos vapores da Praça da Figueira”, contou o agora diretor de uma IPSS de prevenção da delinquência juvenil.
A surpresa foi o desconcertante Jorge Sequeira, que agarrou o público à primeira com a história do senhor Guillotin. “Luis XVI vivia numa gaiola dourada, não gostava que o povo falasse e convenceu o seu engenheiro a desenvolver um sistema para a pena capital. Uma coisa de perder a cabeça. O rei queria silenciar as vozes dissonantes mas acabou por ser ele a testar a lâmina. Consta que a última coisa que disse foi: ‘as mudanças só são cruéis quando não fazemos parte delas’.”
Vem isto a propósito dos desafios que a digitalização está a impor aos contabilistas. Se Ricardo Araújo Pereira não é grande fã do termo “disrupção” – “abomino a palavra”, confessou durante a sua intervenção – Sequeira usou-a sem cerimónia. Misturou-a com os seus livros de referência – “O capitalismo Karaoke” -, disparou-a no meio frases demasiado ritmadas para uma manhã de sábado.
Com a sala cheia, o público aderiu aos exercícios: “Não deixem as vossas vidas nas mãos de ninguém. Eu sei que às vezes precisamos de uma mãozinha. Mas, reparem, aproximem uma mão da cara. Fantástico, nós já a temos. E como estamos a falar de mundo digital, a outra segura o telemóvel para estarmos sempre conectados. Se não o fizerem alguém o fará, um contabilista não certificado, por exemplo...”
Praticamente desconhecido, Jorge Sequeira trabalha regularmente com equipas desportivas, chegou a ser candidato à Presidência da República e tem no currículo mais de 300 palestras. Fala sem filtro: “A Inteligência Artificial [IA] não me preocupa nada. O que me tem causado maior transtorno é a estupidez natural. Não há ninguém que precise do vosso trabalho? Pois a minha contabilista dá-me imenso jeito, se não fosse ela provavelmente já estaria preso”, disse antes do último exercício: 4000 contabilistas a fazer a seta de Usain Bolt.