Economia

Está a nascer a primeira aldeia das artes

Projeto foi apresentado na Secretaria de Estado da Cultura e passa por renovar aldeia onde vivem nove pessoas

D.R.

André Rito

Há três anos, o arquiteto do Porto, João Andrade e Silva, estava a passar de carro em frente à Maternidade Alfredo da Costa, em Lisboa, quando viu um edifício histórico a ser demolido. “O que vão fazer com estas pedras?”, perguntou-se enquanto estacionava. “Eram blocos enormes de mármore, todos esculpidos a pico fino, uma coisa única. Decidi comprá-las”, conta ao Expresso. Foi assim que começou a nascer a primeira aldeia das artes em Portugal. Foi num dia de calor abrasador, com falta de ar, que terminou com uma surpresa desagradável: quando chegou ao carro, o arquiteto tinha uma multa no para-brisas.

As pedras seriam levadas para um lugar a poucos quilómetros de Alfândega da Fé, em Bragança, chamado Felgueiras. Em tempos chegou a ter igreja, escola primária e muita gente. Hoje ainda sobram nove habitantes, umas quantas habitações de xisto abandonadas, outras recuperadas. As ruas já foram reabilitadas e a iluminação em led acende-se todas as noites. Baixa intensidade para não estragar “um céu noturno único”. “Há um grupo de pessoas que tem investido para construir ali uma aldeia das artes”, conta ao Expresso Berta Nunes, autarca de Alfândega da Fé, que suspendeu o mandato em julho para ser segunda candidata na lista do PS às legislativas, pelo círculo eleitoral de Bragança.

Um desses investidores é arquiteto. “Aquela aldeia vai ser um devaneio. Não temos Uber, enotecas, nem Rio Douro, não existe nada. Mas podemos recuperar a aldeia com este tipo de intervenção artística, sem amadorismos, com conceitos estéticos que não limitem o pensamento”, explica Andrade e Silva, que acompanhou a visita da Secretária de Estado do Turismo, há duas semanas.

O projeto já está numa fase avançada. “Estamos a fazer uma candidatura para transformar a aldeia, criar espaços de residência para artistas que queiram escrever, compor, criar um ecossistema artístico para as diferentes áreas da cultura”, contou Andrade e Silva, que pagou €7 mil pelas pedras que chegaram a Alfândega da Fé. “Estão distribuídas pela aldeia. Os respiros das casas de banho são soleiras de mármore que trouxe de Lisboa.”

Recuperar doentes

Uma das primeiras casas recuperadas foi comprada por um médico, que a transformou em hotel rural. O espaço ainda não está aberto ao público, mas já tem recebido alguns convidados. Reabilitado segundo as mais antigas tradições, em pedra sobreposta, este hotel de xisto tem 11 quartos. “Costumo dizer que casei com este lugar. A minha mulher é daqui e eu apaixonei-me por isto. A casa tinha sido dos seus bisavós”, diz ao Expresso Nunes Azevedo, especialista em hipnose clínica, que tem ideias de utilizar o espaço também como terapia para os seus pacientes.

“Tenho outros colegas que vão começar a fazer ali semanas de recuperação com os seus doentes. A partir do momento em que percebemos a qualidade da luz, o silêncio, o ambiente, decidimos também fazer ali uma zona de recobro para os doentes. O projeto do hotel passava por interpretar um lugar para as pessoas recuperarem. Daí evoluímos para a ideia de criar condições para as pessoas terem um recobro num ambiente natural”, explica o médico, que decidiu investir no hotel há quatro anos.

Andrade e Silva investiu em quatro casas. “A principal tem um pátio que vai ser um espaço dedicado aos ateliês de escultores e artistas plásticos. São espaços de trabalho que recuperam a tradição local das casas com pátio. As outras duas serão residências para os artistas viverem. Haverá uma dedicada à música, com um piano de cauda que já comprámos e outros instrumentos musicais. Está acusticamente preparada”, explica a arquiteta Maria João Andrade e Silva, do ateliê responsável pelo projeto, orçamentado em €1 milhão. A recuperação das ruas, muros e iluminação foi um investimento da câmara, na ordem dos €300 mil.

“Os projetos das casas estão todos aprovados na câmara”, garantiu ao Expresso Berta Nunes, que conta com António Franchini, artista plástico do Porto — com uma galeria na Miguel Bombarda —, que já tinha colaborado com a Câmara de Alfândega da Fé como curador de várias exposições, para dar o seu cunho artístico. “A minha função foi dar o arranque”, diz Franchini. “Desconhecia completamente aquela aldeia, deparei-me com um conjunto de casas desabitadas, destruídas, e um turismo de habitação muito diferente. A zona tem potencial para uma aldeia de artes. E não falo apenas de pintura, estamos a falar de música, escrita, onde os escritores podem relaxar. É um silêncio absoluto.”