ARQUIVO Guerra às quartas

Os mistérios de Aljubarrota

É, talvez, a mais mitificada e a mais estudada das batalhas portuguesas. Mesmo assim, muitas perguntas continuam sem resposta.

Habituámo-nos a olhar para a batalha de Aljubarrota como um combate decisivo para a independência de Portugal. Foi-o, de facto. Mas dificilmente se consegue compreender este episódio se nos limitarmos a olhar para o antagonismo Portugal-Castela. Há uma dimensão mais vasta: a Guerra dos Cem Anos entre ingleses e franceses e o Grande Cisma do Ocidente, dividindo os seguidores do Papa de Roma e do de Avinhão.

Isto mesmo explicou o prof. Pedro Barbosa, do Centro de História da Universidade de Lisboa, ao falar na 4ª sessão do II Curso Livre de História Militar - Os Rostos da Batalha", dedicado aos confrontos de Atoleiros, Trancoso e Aljubarrota.

"Pode parecer-nos surpreendente que D. João de Castela, ao invadir Portugal pela Beira, no Verão de 1385, tenha arrasado uma capela perto de Trancoso, onde um ano antes forças suas tinham sido derrotadas. Mas é preciso lembrarmo-nos que o rei espanhol seguia o Papa de Avinhão e, para ele, os portugueses, seguidores do Roma, eram inimigos religiosos".

Dentro da mesma lógica transnacional em Aljubarrota houve arqueiros britânicos a lutar ao lado dos portugueses e cavaleiros franceses na hoste castelhana. E, tal como nas grandes batalhas da Guerra dos Cem Anos, um exército apeado e em posição defensiva, levou a melhor sobre uma formação mais numerosa e baseada na cavalaria pesada.

Como explicou o conferencista, ao contrário doutras batalhas da Guerra dos Cem Anos, como Azincourt e Crécy, em Aljubarrota houve, fundamentalmente, confronto de tropa apeada. O que implica a queda de um mito: o de que os cavaleiros medievais tinham armaduras demasiado pesadas para combaterem apeados. "A arqueologia experimental, sobretudo britânica, demonstrou o contrário. As armaduras do séc. XIV, sendo pesadas, eram tão equilibradas que permitiam ao cavaleiro fazer volteio".

Esta interpretação do campo de batalha em função das armas da época leva, também, a outra revelação interessante. Em Atoleiros (Fronteira), um ano antes, a única forma de entender o dispositivo montado por D. Nuno Álvares Pereira é olhar para o terreno e perceber que o comandante português tirou partido do relevo, dispondo os lanceiros na primeira fila e os besteiros atrás e num plano superior, o que lhes permitia disparar a coberto e por cima das cabeças dos seus camaradas.

Voltando a Aljubarrota o que, tradicionalmente, tem sido descrito como Covas de Lobo (buracos escondidos com uma estaca aguçada no fundo) podem, na realidade, ser restos de estacadas que os arqueiros britânicos costumavam erguer para se protegerem da cavalaria pesada. E algumas covas têm uma implantação estranha, pois situavam-se à retaguarda do provável lugar da primeira linha portuguesa, complicando uma eventual retirada.

Ainda que, segundo Pedro Barbosa, as descrições de Fernão Lopes sejam globalmente fiáveis, é preciso não esquecer que a Crónica de D. João I é escrita décadas depois dos factos. E que há sucessivas edições da obra, divergindo em aspectos importantes. Por exemplo, enquanto nas descrições mais antigas de Aljubarrota é destacado o papel de Martim Gonçalves de Macedo, ao livrar o Mestre de Aviz do ataque de Sandoval, nas mais tardias o episódio vai-se esbatendo, de forma a dourar a imagem do rei.

Também na descrição da batalha de Trancoso a fuga dos camponeses armados que integravam a hoste portuguesa e, depois são massacrados pela cavalaria ligeira (ginetes) castelhana, é mitificada. "Para fugirem na direcção de Trancoso, como diz Fernão Lopes, teriam de se deslocar na direcção da principal força espanhola". Para o prof. Barbosa o que o cronista está a tentar fazer é enaltecer o papel da nobreza nesta guerra. Para não falar da dimensão da derrota: os portugueses só teriam deixado vivo um castelhano para ir contar aos outros como tinha sido. "O espírito nacionalista do nosso grande cronista é perdoável..."

Até 3 de Junho, realizam-se todas as quartas-feiras na Faculdade de Letras de Lisboa conferências integrando o II Curso Livre de História Militar, "Os Rostos da Batalha". As sessões decorrem às 18.00, no anfiteatro III. Embora sujeito a eventuais alterações, o programa é o seguinte:

22 de Abril - De Haitin a Jerusalém: A Batalha pelo 'Outremer', prof. Hermenegildo Fernandes, Centro de História da Universidade de Lisboa. 29 de Abril - Alcácer-Quibir: Esperança de um Império e Crise do Reino de Portugal, profª Maria de Fátima Reis, Centro de História da Universidade de Lisboa. 6 de Maio - Trava-se Napoleão (Buçaco-1810), coronel Francisco de Sousa Lobo. 13 de Maio - A Última Batalha das Guerras Liberais (Asseiceira, 1834), professor António Ventura, Centro de História da Universidade de Lisboa. 20 de Maio - Mouzinho e Gungunhama (Chaimite, 1895), dr. Miguel Sanches de Baena, Centro de História da Universidade de Lisboa. 27 de Maio - Portugal na Grande Guerra (La Lys - 1918), tenente-coronel Aniceto Afonso. 3 de Junho - Operação Nó Górdio (1970), coronel Matos Gomes.

Este curso prolongar-se-á durante Junho e Julho com novas sessões, por regra à quinta-feira, às 18h, dedicadas às batalhas navais, tendo início dia 4 de Junho (Batalha de Salamina, 480 a.C.) e terminando dia 25 de Julho (Batalha de Midway, 1942).