Durante o séc. XII, raramente a perda de uma batalha significou o fim de um estado. Mais depressa um reino desaparecia devido a uma crise de sucessão que por causa de uma derrota militar. Desse ponto de vista, a vitória do exército de Saladino sobre o dos reinos cristãos do além-mar nos Cornos de Hattin, junto ao lago Tiberíades (4 de Julho de 1187), foi uma das grandes excepções da época. O reino de Jerusalém perdia o seu braço armado, o mesmo sucedendo à capacidade operacional das duas grandes ordens militares - Templários e Hospitalários. A queda de Jerusalém e de Acra foi uma questão de semanas. O equilíbrio estratégico só seria reposto e, ainda assim parcialmente, pela III Cruzada comandada pelo rei inglês Ricardo, Coração de Leão (1191).
Este foi o tema da sessão desta semana do II Curso Livre de História Militar "Os Rostos da Batalha" que decorre até 3 de Junho, todas as quartas-feiras, às 18.00 na Faculdade de Letras, por iniciativa do Centro de História da Universidade de Lisboa. A batalha de Hattin e as suas implicações foram analisadas por Hermenegildo Fernandes, docente e investigador daquela faculdade.
Uma batalha só se percebe conhecendo os seus antecedentes.
Ao fim de 90 anos de presença latina no além-mar, o reino de Jerusalém vive uma crise de sucessão: o rei Balduíno III é leproso e está condenado a prazo. Os principais feudatários e a Ordem do Hospital, agrupam-se em torno do seu filho, o futuro Balduíno IV e defendem uma linha moderada perante o crescente poder do sultão Saladino. Aquilo a que hoje chamaríamos os "falcões" tinha por chefe o nobre francês recém-chegado à Palestina Guy de Lusignan, apoiado pelos Templários e por Renaud de Chatillon, nobre desprezado, pela sua crueldade, tanto no campo islâmico como no próprio campo cristão.
Tomando como referência o filme de Ridley Scott, "O Reino dos Céus", o conferencista disse que o enredo político e as personagens estavam "bem descritos", com excepção de Lusignan, "bastante mais hesitante e timorato na vida real que no ecrã". Mas que, apesar de responsável pela derrota de Hattin, acabará bem a sua vida, "quando Ricardo Coração de Leão o fizer rei de Chipre" (1192).
No campo oposto, Saladino consegue a proeza histórica de unificar a Síria e o Egipto e organiza um exército baseado na cavalaria ligeira e nos mercenários curdos e turcos. Espera a oportunidade de desferir um golpe fatal no reino de Jerusalém, cuja fraqueza pressente. Esse pretexto é-lhe dado quando Chatillon, agindo por conta própria, rompe a trégua e massacra a caravana dos peregrinos a Meca. Como explica Hermenegildo Fernandes, "era atentar contra um dos pilares do Islão e humilhar o sultão Saladino, cujo papel passava, também, por garantir o sucesso da peregrinação anual".
O terceiro protagonista, o império bizantino que, apesar de tudo, sobreviverá séculos aos reinos cristãos de além-mar vive uma crise política e económica tremenda com o fim da dinastia dos Comenos. Não tem força militar para intervir e, de resto, no momento da batalha de Hattin é aliado de Saladino, visto como um mal menor e um contrapeso à ameaça dos turcos seljúcidas, na Ásia Menor.
Todos contra todos
Como sublinhou Hermenegildo Fernandes, "engana-se quem olhar para este período como um confronto entre dois blocos homogéneos". No terreno havia alianças de contornos variáveis, misturando diferentes credos religiosos. Por exemplo, a seita dos Assassinos, chefiada pelo Velho da Montanha, descrita um século mais tarde por Marco Pólo, é aliada circunstancial do rei de Jerusalém e faz atentados a Saladino. Já em 1189 assassinará Conrado de Monferat, senhor de Tiro.
No campo cristão, a clivagem entre "pombas" e "falcões" corresponde aos diferentes olhares dos latinos de segunda e terceira geração e dos cruzados recém-chegados. Ao fim de 90 anos de presença na Síria e na Palestina, os francos orientalizaram-se, não tanto na fé e no sistema político, mas nos usos e costumes, padrões de consumo, etc. Os recém-chegados espantavam-se com este mundo novo onde havia tecidos e jóias como a Europa nunca vira, as mulheres se pintavam e se comia e bebia com abundância. "Como se espantaram os cruzados que, ao atacar Lisboa, em 1147 e viam os seus defensores - que lhes pareciam mouros - invocar Santa Maria" e agrupar-se sob a protecção de um bispo...
Apesar do seu valor como combatentes, os cavaleiros cristãos nunca adaptaram as suas tácticas e armamentos à realidade local. Mantiveram-se fiéis às armaduras pesadas que conferiam protecção individual mas roubavam mobilidade. Os bizantinos, que ali combatiam há séculos, baseavam-se na cavalaria ligeira e nos mercenários locais. E diziam ironicamente dos Cruzados: "têm armamento a mais..."
Vencidos pelo calor e pela sede
Esta diferença de conceitos foi decisiva em Hattin. O exército de Jerusalém viajou completamente equipado para o combate, debaixo de um calor infernal. Perante os protestos dos soldados, o timorato Lusignan acampa com as águas do Tiberíades à vista mas não ao alcance do cantil. Os homens de Saladino só se equipam no momento do combate e estão motivados e em boa forma física. No dia seguinte as sucessivas cargas de cavalaria quebram-se contra o anel de aço de Saladino, excepto a da hoste do Conde Raimundo de Tripoli. Habilmente, o sultão manda romper o contacto e Raimundo vê-se fora do campo de batalha com pouca possibilidade de socorrer os seus camaradas cercados.
Ao fim do dia, o exército de Jerusalém e as forças dos Templários e Hospitalários, que equivaliam às dos adversários, estavam liquidadas. Dos grandes feudatários apenas Raimundo e Bailen (que irá defender Jerusalém, tal como se mostra no filme) escapam. Saladino executa Chatillon mas poupa a vida de Lusignan. E voltará a mostrar-se misericordioso com os defensores de Jerusalém, negociando a saída da maior parte dos habitantes, ao fim de um curto cerco de dez dias. Exactamente o oposto do sucedido 90 anos antes, quando os guerreiros da I Cruzada haviam passado quase todos os habitantes da cidade, cristãos incluídos, a fio de espada.
Jerusalém voltará episodicamente à posse cristã em 1229 mas os dias do além-mar latino estavam em contagem decrescente desde a batalha de Hattin.