ARQUIVO Guerra às quartas

"Guerrilha", nome de guerra

Portugueses e espanhóis entraram na modernidade nas pontas das baionetas francesas. Os povos ganham uma nova consciência de si próprios, sobretudo em Madrid, a partir da revolta de 2 de Maio de 1808.

Nair Alexandra

A História dos povos é atravessada por momentos-chave. Na Península Ibérica um deles foi a Guerra Peninsular, no início do século XIX: as populações tomaram consciência da sua condição de uma forma como nunca antes sucedera. É o mote da conferência "El Dos de Mayo de 1808" apresentada (em língua castelhana) no Instituto Cervantes, a 8 de Maio, por Américo José Rodrigues, historiador militar e coronel. Temos outra viagem aos temas castrenses no tempo, desta feita fora do I Curso de História Militar da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.

Porque é que as invasões napoleónicas - chamadas, em Espanha, "Guerra da Independência" - foram um momento essencial na História ibérica? "Fomos empurrados para a modernidade à força, pelos Franceses", afirma o historiador: "O mundo em que vivemos devemo-lo às ideias da Revolução Francesa, aos ideiais de Liberdade, Igualdade e Fraternidade, mesmo se os recebemos nas pontas das baionetas dos soldados de Napoleão". Essa relação, muitas vezes ambígua, com a modernidade em que entrámos pela via do Iluminismo e, sobretudo, do ideário da Revolução tricolor, marcou o percurso dos dois países "até no século XX", salientou.

Américo José Rodrigues começou por apresentar o contexto internacional desse atribulado início dos anos de 1800: "Napoleão conseguira dominar aquilo a que ele próprio chamava a "besta europeia", a Áustria, a Prússia e a Rússia. Queria dominar o 'leopardo inglês'. Só o faria por mar". Nasce a ideia do Bloqueio Continental. Portugal, "com um império, uma armada, um território, uma rainha demente e um exército reduzido à indigência", é um alvo fácil, e, com o Brasil, "El Dorado" da época, "encontra-se à mercê" do jogo diplomático. A Espanha, entretanto aliara-se à França. Chega a Invasão em 1807, com a partida da corte para o Brasil, à qual o historiador chama "retirada política com uma base estratégica, uma ideia que nem era nova". E se os milhares de homens que entram em Portugal às ordens do general Junot ficaram "a ver navios", segundo a expressão popular celebrizada sobre o fracasso dos invasores ao deixarem partir a Família Real, eles "ocuparam o país sem darem um tiro", sublinhou o historiador.

Em Espanha a entrada das tropas francesas faz-se em 1808 - passam agora dois séculos -, a pretexto do reforço da invasão do território português. Mas ali "Napoleão consegue fazer em Espanha o que não conseguira em Portugal: sentar no trono gente da sua confiança e do seu sangue". O rei D. Carlos IV entrega o trono ao seu filho, Fernando, e a família real espanhola irá para Baiona até que, em 5 de Maio, entregará a coroa ao irmão de Bonaparte, José. Contudo, a saída do rei e dos infantes agita a população de Madrid, e, em particular, um homem dos bairros pobres, Blas Molina Soriano: "Foi ele quem acendeu a mecha da revolta na manhã de 2 de Maio, ao gritar'Traição!' e, pela primeira vez, 'Arriba Espanha!'. Despertou a consciência do povo. Isto disse-o Benito Peréz Galdós." (escritor espanhol do século XIX) - o célebre quadro de Goya sobre os fuzilamentos do 3 de Maio testemunham a repressão que se seguiu a essa revolta.

O rastilho acende-se noutros lados e começa a guerra de "guerrilha", senão uma novidade total na História, pelo menos uma expressão nova nos manuais de História Militar. E enquanto em Portugal o apoio efectivo do exército britânico expulsa as tropas francesas e as acções de guerrilha são, em regra, coordenadas com os militares, em Espanha aquela terá um peso muito maior na resistência às invasões, sublinha-se na conferência, onde são referidos diversos episódios da Guerra Peninsular. Aqui, conclui-se, "os grandes heróis são o povo português e o povo espanhol". Mas quem acende a fogueira da revolta fica, às vezes, no anonimato. Américo José Rodrigues lembrou que Blas Molina, entretanto tornado guerrilheiro, após a retirada francesa, escreveu uma carta a D. Fernando VII a pedir um emprego: "O rei nem lhe respondeu".