ARQUIVO Sismos em Portugal

Um grande sismo no século XXI

O período de retorno do sismo de 1755 é de mais de mil anos, mas o LNEC fez uma simulação para o Expresso como se o retorno fosse hoje, 250 depois. Clique para visitar o dossiê Sismos em Portugal

Virgílio Azevedo (www.expresso.pt)

A maior parte dos especialistas defende que, em Portugal, o período de retorno de um sismo com uma magnitude semelhante ao de 1755 - entre 8,7 e 9 na Escala de Richter - é bastante longo, da ordem dos mil anos ou mesmo mais. Em todo o caso, a previsão em sentido estrito é um conceito que ainda não faz parte do léxico da sismologia, com uma única excepção: os tsunamis. Por enquanto, os cientistas apenas podem fazer estimativas, recorrer ao jogo das probabilidades e simular cenários. Mas neste tipo de exercício, o que aconteceria caso ocorresse no século XXI um terramoto com características equivalentes ao que abalou o nosso país há 250 anos?

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O Laboratório Nacional de Engenharia Civil (LNEC) dá-nos a resposta através do seu simulador de cenários sísmicos, um conjunto de programas informáticos associado a um sistema de informação geográfica com base no Censos de 2001, que detalha para todo o território nacional, ao nível da freguesia, os danos humanos, materiais e económicos provocados por um terramoto com uma determinada magnitude. O simulador tem, obviamente, algumas restrições, devido à sua grande complexidade. Uma delas é que, nos danos materiais e económicos, se aplica apenas ao parque habitacional existente e não aos edifícios de uso público como escritórios, superfícies comerciais, hospitais, escolas, instalações desportivas ou industriais. Nem às infra-estruturas de transportes, comunicações, energia, água e saneamento. Outra limitação é que não tem uma componente sazonal e demográfica nos seus parâmetros, ou seja, são postos de lado fenómenos como os movimentos pendulares da população entre o centro e a periferia da Área Metropolitana de Lisboa nos dias de trabalho, ou a maior concentração de turistas nacionais e estrangeiros durante a época de Verão no Algarve. A informação estatística que entra no simulador diz somente respeito à população residente e parte de uma única hipótese: um sismo à noite, com 95% dos portugueses em casa.

Apesar destas condicionantes, numa simulação feita pelo LNEC a pedido do EXPRESSO para as três zonas do país com um nível de risco sísmico mais elevado - a cidade de Lisboa, a Área Metropolitana de Lisboa e concelhos limítrofes (onde se concentra 40% da riqueza nacional), e o Algarve - os resultados obtidos são, sem dúvida, catastróficos. Com efeito, um sismo nocturno com o grau 8,7 a 9 da Escala de Richter provocaria, só nestas regiões, mais de 25 mil mortos, 14 mil feridos, o colapso de 25 mil edifícios de habitação, danos severos noutros 74 mil e perdas económicas equivalentes a 13 % da riqueza nacional (PIB) em 2001!

"O resultado desta simulação tem uma certa margem de incerteza, e ainda que se obtenham danos materiais apreciáveis e perdas económicas catastróficas, mesmo sem considerar os custos indirectos, o número de mortos seria inferior ao de 1755, porque apesar de tudo a população hoje está mais preparada para enfrentar um grande sismo e a Protecção Civil tem feito um trabalho importante na área de Lisboa e a nível nacional", ressalva Ema Coelho. A chefe do Núcleo de Engenharia Sísmica e Dinâmica de Estruturas do LNEC acrescenta que "na simulação entraram parâmetros como as características dos solos, as tipologias construtivas do parque habitacional, a vulnerabilidade sísmica deste parque e a eficácia das operações de emergência da Protecção Civil", mas assinala que "este modelo não quantifica danos em construção moderna não fiscalizada e em construção clandestina legalizada", o que significa que os estragos provocados por um terramoto semelhante ao de 1755 poderiam ser maiores.

Maria Luísa Sousa, investigadora do LNEC envolvida nesta simulação, destaca também o facto de "a avaliação económica dos danos estruturais nos edifícios de habitação não incluir efeitos colaterais, perdas dos recheios e dos materiais neles armazenados, e outros dados, como o seu tempo de reposição ou o tempo de reparação das estruturas, por exemplo". A cientista esclarece que "há autores que afirmam que as perdas nos recheios podem ser superiores a 10% do total desses danos, enquanto outros dizem que esse valor pode atingir os 50%". Por outro lado, "as estatísticas sobre os danos provocados pelos sismos no século XX mostram que cerca de 25% das vítimas mortais não tiveram origem no colapso de estruturas, sendo antes uma consequência de efeitos colaterais, como a liquefacção dos solos, tsunamis e incêndios". Tudo somado, não há dúvida que os resultados obtidos pelo LNEC são dramáticos mas, mesmo assim, encontram-se subavaliados.

Entretanto, o Algarve é a região mais vulnerável do país, como se pode ver pelos resultados da simulação: cerca de 3% da população poderia morrer e 30% dos edifícios de habitação entrariam em colapso ou ficariam gravemente danificados, caso ocorresse um grande sismo. As ameaças não vêm apenas da terra, mas também do mar. Como se sabe, o Terramoto de 1755 foi seguido de um grande tsunami cujas ondas atingiram os seis metros de altura na costa de Lisboa e os 10 a 12 metros no Algarve, provocando mais danos humanos e materiais nas zonas já atingidas pelo abalo sísmico. O Centro de Geofísica da Faculdade de Ciências de Lisboa fez pela primeira vez, a pedido do EXPRESSO, a simulação de um tsunami semelhante ao de há 250 anos, incluindo a sua entrada no Tejo, com os tempos de chegada às várias zonas da costa portuguesa. E o risco é bem evidente para todas as cidades do litoral sudoeste e sul do país, em particular no Algarve.

Pedro Soares, um investigador em mecânica de fluidos que participou na simulação do Centro de Geofísica, observa que neste exercício "a velocidade de propagação do tsunami no oceano é muito elevada e próximo da fonte ultrapassa os 600km por hora". Com a diminuição da profundidade, "esta velocidade diminui, de tal maneira que à entrada do estuário do Tejo baixa para 60km e dentro do estuário reduz-se a 30km/hora". Em todo o caso, "os efeitos dentro do estuário e a interacção com a zona ribeirinha de Lisboa são um pouco mais elevados do que este modelo produz, por efeitos do galgamento das águas e da inundação". Assim, os materiais arrastados pelas ondas "têm um efeito adicional ptencialmente destruidor, tanto na fase de 'run-in' (avanço) como na fase de 'run-out' (recuo)". Na região próxima da fonte do tsunami, no sudoeste do Cabo de S. Vicente, o primeiro movimento da superfície oceânica é muito acentuado, já que a crista máxima tem mais de 15 metros de altura, enquanto a cava está três metros abaixo do nível do mar. Pedro Soares estima que o tsunami inunde a costa oeste do Algarve com ondas de 12 metros de altura, cerca de 17 minutos depois da ocorrência do sismo que o provocou. Quanto à costa oeste de Lisboa, é atingida com ondas de seis metros cerca de 25 minutos depois e Cascais aos 29 minutos. A baixa profundidade do estuário do Tejo abranda o tsunami e a sua amplitude, chegando as suas vagas ao Terreiro do Paço 55 minutos depois do sismo.

Entretanto, um estudo recente de Sebastião Braz Teixeira, especialista da Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Algarve, apresentado em Maio em Lisboa num seminário internacional sobre tsunamis organizado pela Fundação Luso-Americana, quantifica o risco de tsunami para a costa algarvia. E os números a que chega são muito preocupantes. "O litoral do Algarve, com uma frente de mar de cerca de 250km, é aquele que, pela proximidade, constitui a primeira frente costeira a sofrer o efeito de um eventual tsunami gerado na sequência de um hipotético terramoto com epicentro a 150km do Cabo de S. Vicente", afirma Braz Teixeira no seu estudo. Admitindo "um evento extremo idêntico ao registado na sequência do Terramoto de 1755", o especialista aponta "para uma população máxima em risco de cerca de 200 mil pessoas, na eventualidade do tsunami ocorrer durante o pico de ocupação das praias, a meio de uma tarde de Agosto". E se acontecer durante a noite, este número baixa para 65 mil pessoas. Quanto aos bens em risco (construções, aeroporto, portos, ferrovias, culturas agrícolas, terrenos, embarcações, automóveis), as estimativas obtidas chegam a valores da ordem dos dois a três mil milhões de euros, isto é, o equivalente a metade do PIB do Algarve! Braz Teixeira afirma ainda que "a zona mais exposta da região está localizada na planície costeira de Manta-Rota, abrangendo o litoral até Vila Real de Santo António". E logo a seguir vêm as cidades de Portimão e Quarteira.

O estudo agrupa a costa algarvia em quatro unidades geomorfológicas distintas, em termos de análise de vulnerabilidade à incidência de um tsunami: o litoral de arriba; o litoral baixo e arenoso; os estuários dos rios, lagunas e lagoas costeiras; e as praias. E, à excepção da primeira zona, todas são muito vulneráveis. As conclusões relativamente às praias são mesmo surpreendentes. Assim, a experiência demonstra que "condições de tempestade com incidência de ondas de 2,5 a 3 metros de altura são suficientes para varrer a totalidade das praias. Face a este regime normal, imediatamente se conclui que um tsunami com características menos energéticas do que as verificadas em 1 de Novembro de 1755 é suficiente para promover a imersão completa das praias do Algarve".

Algumas infraestruturas decisivas para o desenvolvimento do turismo na região e para a realização de eventuais operações de socorro em caso de um grande sismo seguido de tsunami, têm um nível de risco impressionante. É o caso do Aeroporto Internacional de Faro, avaliado neste estudo em 500 milhões de euros. No ponto mais próximo do litoral, a pista está construída apenas a cinco metros acima do nível médio do mar e localiza-se a menos de 1,5km da Ilha de Faro. Braz Teixeira conclui, por isso, que "a conjugação da baixa cota de implantação do aeroporto e da proximidade a um dos troços do litoral mais vulnerável ao galgamento das ondas de um tsunami, confere a esta infra-estrutura um grau de exposição muito significativo".

E num debate realizado na Universidade do Algarve pouco depois da tragédia ocorrida na Ásia no final de 2004, João Alveirinho Dias, professor da Faculdade de Ciências do Mar e do Ambiente, considerava que as consequências de um tsunami como o de 1755 seriam "absolutamente catastróficas e dramáticas", devido ao elevado índice de construção e à grande densidade populacional do litoral algarvio, já que cerca de 60% das habitações da região estão concentradas numa faixa de 2km ao longo da costa.

Texto publicado na edição do Expresso de 22 de Outubro de 2005