Em meados da década de 80, no centro de Sarajevo, uma lápide na parede e duas pegadas pintadas a vermelho no passeio assinalavam o local onde o arquiduque Francisco Fernando fora assassinado a 28 de Agosto de 1914. A retórica dos dizeres era chocante, pelo menos para um não jugoslavo, dizendo que fora ali que o "heróico patriota Gavilo Princip" dera os primeiros tiros do combate pela liberdade da pátria.
Esses disparos foram, na realidade, os primeiros da Grande Guerra e viriam a arrastar o mundo para um conflito de uma violência sem precedentes que custaria a vida a dez milhões de pessoas, acabaria com quatro impérios e desencadearia em 1917, na Rússia, a revolução com que Karl Marx havia sonhado sete décadas antes. Algum desse sangue, tão gratuitamente evocado, viria, de resto, a cair sobre a cabeça da própria Bósnia, mergulhada numa tenebrosa guerra civil entre 1992 e 1995 e que martirizaria Sarajevo.
Como pôde um atentado levar o mundo à guerra, quando, nos anos anteriores, houvera tantos chefes de estado e cabeças coroadas ceifados pela violência política? Fora o caso, para só citar alguns, do presidente francês Sadi-Carnot (1894), do Xá da Pérsia (1896), da imperatriz austríaca Sissi (1898), do rei sérvio Alexandre I (1903) ou do rei D. Carlos e do príncipe herdeiro Luis Filipe em Portugal (1908).
O barril de pólvora dos Balcãs
Quando Francisco Fernando decide visitar Sarajevo, capital da Bósnia-Herzegovina, protetorado austríaco anexado à Turquia depois da derrota desta na I Guerra Balcânica (1908), estava reunida uma série de coincidências fatais. Dois impérios estavam em decadência: o turco e o austro-húngaro. O vácuo criado pela desagregação turca nos Balcãs originara o nascimento de novas nações da Bulgária e Grécia à Sérvia e encorajava novos nacionalismos, alguns dos quais a expensas da Áustria-Hungria que procurava nas pequenas coisas mostrar uma força que, nem militar nem politicamente, tinha (houvera três guerras balcânicas entre 1908 e 1913, todas em detrimento da Turquia).
A Sérvia era aliada da Rússia e a referência ideológica de muitos nacionalistas bósnios era o pan-eslavismo. Por sua vez a Rússia estava ligada por um sistema de alianças à França e ao Reino Unido. O mesmo se dava, no campo oposto, com a Áustria e a Alemanha.
O que se segue é duma ironia cruel, como se os deuses já tivessem decidido que tinha, inevitavelmente, de haver guerra. A espionagem imperial, sabedora de que grupos clandestinos bósnios preparavam alguma coisa na sombra, desaconselha fortemente a viagem de inspeção de tropas a Sarajevo do herdeiro da coroa, tanto mais que praticamente coincidiria com a evocação da batalha do Campo dos Melros, data-chave do nacionalismo sérvio. Francisco Fernando que era um homem irascível não quis dar parte de fraco.
Os conspiradores eram estudantes nacionalistas, apoiados logisticamente por dirigentes dos serviços secretos sérvios e integrando uma organização clandestina, a Mão Negra, cuja retórica, esquema organizativo e processos de atuação fazem pensar na atual Al-Qaeda. O objetivo era abalar o domínio austríaco sobre a Bósnia ou, quem sabe, provocar a guerra. Apesar de estarem bem armados e equipados e estarem distribuídos por três locais, o atentado revelar-se-á de um amadorismo total.
Um atentado que quase falhou
No domingo, 28 de Junho, o descapotável que transporta Francisco Fernando e a sua mulher Sofia rola devagar na avenida marginal do rio Miljacka entre filas de populares que aplaudem. Nedeljko Cabrinovic, um dos terroristas, lança a bomba que lhe tinham dado em Belgrado mas esta bate na capota de lona enrolada na traseira do carro do arquiduque, escorrega para o pavimento e explode junto à viatura seguinte. Cabrinovic engole uma cápsula de cianeto mas o veneno estava adulterado. Tenta suicidar-se lançando-se ao rio mas este está seco e cai num areal onde é preso...
Francisco Fernando interrompe o desfile e vai ver os feridos ao hospital. Decide-se, então, alterar o percurso do cortejo por razões de segurança, circulando sempre pela marginal mas a informação não chega a todos, nomeadamente ao motorista do arquiduque. Por precaução o conde Harrach, que está armado, posta-se no estribo esquerdo do carro do arquiduque, do lado do rio.
À esquina da Rua Imperador Francisco José, onde outro grupo de conspiradores esperava, o motorista do carro imperial vira para o percurso inicial e quando dá pelo erro, para e inicia penosamente a manobra de marcha-atrás. Não acreditando na sua sorte, Gavilo Princip sai da sombra, salta para o estribo direito, dispara contra o peito de Sofia e a seguir atinge Francisco Fernando no pescoço. Ambos os ferimentos são mortais: Harrach pergunta ao arquiduque se está bem e este responde "não é nada" antes de cair para a frente.
Foi irónico porque se havia alguém na corte austríaca favorável a uma maior autonomia dos bósnios era, justamente, Francisco Fernando. E foi trágico mas naquele momento ninguém levou o acontecimento a sério. O kaiser alemão não viu motivos para interromper o seu cruzeiro no Mar do Norte. O presidente francês Poincaré manteve a viagem marcada à Rússia. Jorge V continuou de férias em Inglaterra e o chefe do estado-maior alemão Falkenheim prosseguiu com a sua cura de águas em Baden-Baden...
A guerra, um mês depois
Ninguém levou o assunto demasiado a sério mas os demónios da guerra já tinham sido libertados e trabalhavam na sombra. Na Áustria os "falcões" tentam forçar um ataque imediato à Sérvia mas não se conseguem impor. Se o tivessem feito, nem Belgrado nem nenhum dos seus protetores, a começar pela Rússia, teria conseguido reagir e o facto consumado militar teria prevalecido sem consequências globais.
Certos de que, com o apoio alemão, conseguiriam intimidar os sérvios sem recorrer à força, os austríacos entram numa escalada retórica que vai assustar Moscovo que, para manter as aparências perante os eslavos dos Balcãs, reforça consultas diplomáticas com Paris. As elites de França não morrem de amores pelos sérvios, vistos como uns semi-selvagens que poucos anos antes tinham martirizado o seu próprio rei, mas também não querem deixar cair o seu aliado russo. Para além de que o revanchismo relativamente à derrota de 1870 perante os prussianos nunca desapareceu.
A 23 de Julho a Áustria envia um ultimato insensato e humilhante à Sérvia, ao qual o primeiro-ministro Nicola Pasic, um pacifista convicto, acaba por responder afirmativamente a quase todos os pontos, pedindo, apenas, tempo para consultar o Governo sobre o mais polémico: uma comissão de inquérito ao atentado liderada por polícias austríacos.
O embaixador austríaco em Belgrado tinha autonomia para aceitar a resposta sérvia como boa mas agarra-se às suas ordens formais e manda o pessoal diplomático sair do edifício e regressar a Viena. A Áustria considera que o ultimato foi rejeitado e declara guerra à Sérvia. A Rússia responde com a mobilização geral. O czar Nicolau II, o mais pacifista dos soberanos europeus, faz um apelo desesperado ao seu parente alemão, o imperador Guilherme II, para que não haja guerra. E manda o ministro Samsonov alterar a ordem de mobilização das tropas, de geral para parcial e só executável junto à fronteira austro-húngara.
Samsonov, não só não cumpre a ordem, como toma uma decisão fatal: manda prosseguir a mobilização e aconselha o estado-maior e os comandantes operacionais a arrancarem os telefones da ficha para não tomarem conhecimento de eventuais contra-ordens. A rapidez da mobilização russa, muito maior que o esperado, assusta os alemães e estes começam a mobilizar, também e a França faz o mesmo. Era a reação em cadeia, fruto da rigidez do sistema de alianças.
Estava detonado o rastilho da guerra e era tarde demais para o apagar. Por causa de um atentado num sítio que 90% dos europeus teriam dificuldade em apontar no mapa, levado a cabo por razões obscuras e executado por um terrorista de nome impronunciável, a civilizada e cavalheiresca Europa deixava-se levar para uma guerra que, em bom rigor, ninguém queria, arrastada pela engrenagem infernal que ela própria criara, a pretexto de preservar a paz.
"Os factos adiantaram-se às intenções", sentenciaria mais tarde Winston Churchill.