ARQUIVO Diário

Um sopro entre as coisas: Helena Almeida (1934-2018)

Faleceu na terça-feira, com 84 anos, Helena Almeida, uma das maiores artistas portuguesas

josé carlos carvalho

Helena Almeida, que faleceu terça-feira em Lisboa aos 84 anos é hoje considerada por artistas, críticos e curadores uma das artistas plásticas mais decisivas da segunda metade do século XX português, tendo criado uma obra que atravessa fronteiras disciplinares e, a cada momento, questiona as relações entre o corpo, a obra, o espaço e os diferentes meios criativos que explorou.

Filha do escultor Leopoldo de Almeida, um dos artistas mais envolvidos com a arte pública do Estado Novo, a artista praticamente nasceu a ver arte, mas foi o interesse pela pintura, que estudou depois na Escola de Belas Artes de Lisboa, que desencadeou uma obra artística que nunca deixou de se auto-interpelar, incorporando a performance, o vídeo e, sobretudo, a fotografia ao mesmo tempo que manteve sempre um núcleo de questões reconhecíveis. A exploração da virtualidade do espaço de representação, a centralidade do corpo (sempre o seu) e do gesto, dos limites da pintura e da possibilidade da manutenção de um gesto pictórico fora das suas convenções tradicionais são particularmente reconhecíveis numa obra que anuncia e reinterpreta pessoalmente os ventos de transformação da própria ideia de arte sugeridos pelo minimalismo, pelo conceptualismo e pelas atitudes performativas assumidas pelas neo-vanguardas do final dos anos 60 e inícios de 70.

A esse compasso com o tempo internacional não terão sido estranhos os estudos iniciados em Paris em 1964 ao abrigo de uma bolsa da Fundação Calouste Gulbenkian e as obras que produziu no final dessa década em que realiza a sua primeira exposição individual (Galeria Buchholz, 1967) mostram isso mesmo. As pinturas desse tempo são francamente objetualizadas, mostrando a tela descarnada, parcialmente coberta ou adicionada de outros objetos como se a pintura não se conformasse com os seus limites e quisesse sair das suas condições de partida.

Mas é nos anos 70, década em que participa por exemplo na exposição organizada por José Ernesto de Sousa “Alternativa Zero” (1977), que assistimos a uma verdadeira explosão dos seus parâmetros criativos. É também nessa altura que o seu rosto e corpo ganham maior proeminência no seu trabalho e que ao mesmo tempo a fotografia se torna o elemento que simultaneamente une o mental e o visual num permanente refazer das possibilidades de representação, movimento, cor, presença que tanto apelam a dimensões sensoriais como exigem ao espectador uma perceção da natureza do meio em que a obra se exprime. Em séries como “Desenho Habitado”, “Pintura Habitada” ou nas fotografias e vídeo intituladas “Ouve-me” Almeida transforma a fotografia num instrumento de edificação de um teatro simultaneamente abstrato e corpóreo onde a individualidade e a intimidade se encontram com a condição feminina e com a possibilidade de um corpo eminentemente político.

Sempre auxiliada pelo marido, o arquiteto e também artista Artur Rosa, o homem do outro lado da câmara em cada série em que faz uso da fotografia, Helena Almeida vai continuar a expandir este universo nas décadas seguintes encontrando sempre novas metamorfoses e novos recantos para uma linguagem que se aumenta a cada movimento como é visível em séries como “Saída Negra”, 1995, “Dentro de Mim”, “Seduzir”, 2002, “Dois Espaços”, 2006, ou o “Abraço”, 2006, esta última mostrada este ano na Fundação Arpad Szenes/Vieira da Silva e que tem a peculiaridade de trazer Artur Rosa para o campo visível da obra.

Celebrada em várias retrospetivas e exposições antológicas das quais se destacam as apresentadas em Portugal no Centro Cultural de Belém (2004) e em Serralves em 1991, 2005, e 2015 (esta última mostrada no ano seguinte no Jeau de Paume em Paris e no Wiels de Bruxelas); no CGAC em Santiago de Compostela e no MEIAC, em Badajoz (ambas em 2000), no Drawing Art Centre em Nova Iorque (2004) e na Fundação Telefónica, em Madrid, em 2009, é reconhecida pelos diferentes quadrantes da crítica portuguesa e citada em antologias da arte conceptual internacional como a influente “Conceptual Art” de Tony Godfrey (1998).

Este reconhecimento reflete-se ainda no campo do colecionismo. Para além de marcar presença em inúmeras coleções particulares encontra-se representada em coleções referenciais como a de Joe Berardo, da Caixa Geral de Depósitos, da Fundação Calouste Gulbenkian ou do Museu de Serralves.

Igualmente significativas são as suas presenças nos grande eventos artísticos internacionais. Helena Almeida representou Portugal na Bienal de São Paulo (1979), nas bienais de Veneza de 1982 e 2005 e na Bienal de Sydney (2004). Neste momento e até 4 de novembro, vários trabalhos seus encontram-se em exibição na Tate Modern, em Londres. Ao mesmo tempo a sua obra foi abundantemente premiada, podendo destacar-se nesse particular o Prémio da 11ª Bienal de Tóquio (1984); o Prémio da Fundação Calouste Gulbenkian, 1984; o BESphoto, 2004 e a consagração formal da crítica que chegou também em 2004 através da AICA.

Pela sua capacidade de reinvenção, da obra e dos termos da própria contemporaneidade artística, Helena Almeida foi capaz de se manter relevante ao longo de mais de cinco décadas de produção, atravessando conjunturas críticas muito distintas e afirmando-se como uma referência para várias gerações posteriores. Para a história fica uma obra na qual elegância, leveza e visceralidade nunca foram inimigas entre si.