Música

O "álbum perfeito" de Amália

Foi considerado "o álbum perfeito" de Amália Rodrigues. " Com Que Voz" - o disco que deu nome ao documentário estreado na semana passada - traz a voz original dos poetas portugueses e a marca determinante de Alain Oulman.

João Lisboa (www.expresso.pt)

Em 1990, David Mourão-Ferreira terá chamado a Amália "um heterónimo de Portugal". Não é, seguramente, um disparate afirmá-lo (mais ainda se aceitarmos como boa a recente tese de José Alberto Sardinha, em "A Origem do Fado", segundo a qual a raiz deste género musical não é exclusivamente lisboeta mas sim generalizadamente nacional), embora seja, talvez, um ponto de vista demasiado empobrecedor - por excesso de patriotismo, pecado comum e assaz simétrico da 'fadista', autodepreciação lusa - do génio de Amália Rodrigues.

Tal como ela própria afirmava não sentir particular orgulho nem tristeza decorrentes da sua origem popular ("sou do povo por condição"), o facto de ter nascido em Portugal e de ter oferecido ao fado a projeção universal que se conhece não é questão muito diferente do que, falando de si, alguns anos depois, Sérgio Godinho deixaria luminosamente claro em económicas palavras: "Vim ao mundo, por acaso, em Portugal, não tenho pátria, sou sozinho e sou da cama dos meus pais."

Sim, Amália era portuguesa, sim, a música que ela assombrosamente cantava provinha de uma herança vetustamente local, mas o que a elevava acima de todos os outros era o seu infinito talento de intérprete e recriadora de algo que, até ao seu aparecimento, fora apenas uma manifestação (sub)cultural popular 'típica' e, frequentemente, mal amada.

COM QUE VOZ Amália Rodrigues 2 CD Valentim de Carvalho/iPlay
E, convém não o esquecer, somente atingiu a maturidade plena e conquistou as lettres de noblesse definitivas através da contribuição preciosa do francês Alain Oulman e da sua persistência no enriquecimento e ampliação do vocabulário melódico e harmónico do fado, abraçado às palavras dos maiores poetas da língua portuguesa.

O enlace entre a poesia "culta" e o fado

O mesmo Mourão-Ferreira o admitiu ("Deve-se a Alain Oulman a pioneira missão de estabelecer um determinante e fecundo enlace entre a poesia portuguesa de matriz 'culta' e essa específica forma da música popular - o fado") e Amália não o escondia ("O Alain foi o nascer de uma artista completamente diferente. A minha maneira de cantar estava à espera daquilo").

Foi, naturalmente, por isso que "Com Que Voz" (1970) - ponto culminante do percurso iniciado em "Busto" (1962) e momento em que um reportório integral de Oulman sobre textos de Camões, O'Neill, Mourão-Ferreira, Ary dos Santos, Homem de Mello, Cecília Meireles e Manuel Alegre foi entregue à voz em absoluto estado de graça de Amália - viria, muito justamente, a ser considerado "o álbum perfeito".

Agora reeditado, com o bónus de um segundo CD de versões alternativas, temas 'perdidos' e outras raridades que (juntamente com um booklet esclarecedor mas com uma organização de textos um tanto descosida) contextualizam e aprofundam a perspetiva para o entendimento da obra, seria indesculpável perder a oportunidade de mergulhar de novo neste canto em que, uma vez imersos, as coordenadas geográficas perdem (quase) todo o sentido.

Texto publicado na revista Atual de 29 de janeiro de 2011